Ana Paula Cecato: Nós, brancos, precisamos falar sobre o racismo de Lobato

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio

Passei a tarde inteira pulsando, dentro de mim, um texto que falasse sobre o espinhoso assunto do racismo na obra do Monteiro Lobato. Pensei muito, muito mesmo, mas, como sempre parto do princípio de que, quando acho que tenho algo a dizer, eu digo, mas também parto de outro princípio de que, quando eu digo, eu preciso ouvir outras vozes, as quais poderão concordar ou não com o ponto de vista que aqui defendo.

Vou iniciar escrevendo um pouco sobre mim: sou uma professora branca que atua numa escola de periferia em que a maioria dos alunos é negra. Sou professora-mediadora de leitura, a palavra escrita é uma ferramenta muito importante do meu trabalho, tanto para ser lida, vocalizada, produzida, vivida. Tenho 33 anos, nasci no ano da redemocratização do Brasil, não fui leitora de Lobato na infância, mas, como grande parte das crianças brasileiras, tomei contato com sua obra pelas produções televisivas do Sítio. Esta é a minha história, e desde já quero dizer que respeito a história de cada um que vier aqui contrapor o que eu disser.

Há algum tempo, ao entrar no magistério público, me deparei com uma realidade social que até então eu desconhecia, uma realidade muito bem desenhada pelo Celso Gutfriend em um de seus livros, “com muitos flagelos sociais, mas repleta de vida imaginária”. Diariamente conheço muitas histórias de vida, histórias de pura resistência e insistência na vida, para quem é muito difícil assumir quem se é, por se deparar, a todo instante, com barreiras sociais que a gente branca desconhece, como ser seguido ao entrar em shopping, o táxi ou a lotação não parar, ser revistado pela polícia. Violências diárias. Que um branco não sabe o que é. Eu juro, a gente não sabe. E não respeita.

Como professora, nas leituras que ofereço aos alunos, eu preciso fazer escolhas. E, desde que eu fui me dando conta (é no gerúndio mesmo) de que a minha aula é um espaço que não só precisa acolher e respeitar a diversidade, mas também precisa combater todo e qualquer preconceito, eu escolho livros que discutam estas questões sem clichês e estereótipos. E, sem dúvidas, o preconceito racial ainda é o mais entranhado na estrutura social brasileira, porque ele é “invisibilizado” no discurso, mas está bem visível na prática.

Na obra de Lobato, o racismo está no discurso das personagens e do narrador, não está subjacente, está explícito. Não quero entrar na discussão do Lobato “homem de seu tempo”, quero entrar na discussão da recepção de seus textos por turmas de crianças e adolescentes de uma realidade periférica. Como abordar esta questão de uma forma que a vida imaginária de uma criança negra não seja, mais uma vez, apagada? Como contextualizar problemas estruturais da colonização brasileira, muitas vezes incompreendidos pelos adultos? Como não ser adultocêntrico ao ler os livros de Lobato com crianças? Como um mediador de leitura pode, simplesmente, se colocar “entre” um livro e uma criança, e não “com” eles, uma vez que também é um leitor?

Como tenho dito, eu faço escolhas de livros a todo o momento, e, a cada dia mais, minhas escolhas são no sentido de trazer histórias que empoderem, sobretudo, as meninas negras, pois são alvo de duplo preconceito, o de raça e o de gênero. Quero que meus alunos amem os livros, se reconheçam como leitores, e, se, toparem com Lobato quando forem adultos e leitores críticos, possam fazer uma discussão consciente.

Caso, mesmo depois deste texto, você, professor mediador, quiser ler Lobato com os alunos, leia, não defendo a censura. Defendo as escolhas, e a minha é a que está neste texto. No entanto, procure conhecer a fundo da obra do autor, se prepare para falar sobre o racismo e faça a mediação da leitura. E não se esqueça: a leitura é sempre o que a gente faz com ela.



Ana Paula Cecato é graduada e mestre em Letras. É professora de Língua Portuguesa e atua no Núcleo de Formação de Mediadores de Leitura na Câmara Rio-Grandense do Livro, coordenando os cursos de extensão Tessituras: formação de mediadores para programas de leitura, e o Encontro de Práticas de Mediação de Leitura. Também coordena programas de leitura que levam autores a escolas públicas. Através do projeto Descobrinhança, visita escolas, bibliotecas, feiras de livros, ministrando encontros de formação para mediadores de leitura. http://www.facebook.com/descobrinhanca e anacecato@gmail.com.
Foto: Acervo pessoal.

Literatura RS

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