Estou preso em Ralph Ellison. Vinha suspeitando disso nos últimos meses. Agora, tenho certeza dessa falha trágica. Só sei falar dele. Virei crítico de um autor só. Acontece. Dói. E não passa. Assim sendo, devo lembrar que, em 1952, quando a Random House publicou Homem Invisível, o mundo pôde conhecer o inestimável trabalho de manipulação artística de certos elementos muito caros à cultura popular negra. A saber: o jazz, a oralidade, e a necessidade de certa teatralização do comportamento social como estratégia de sobrevivência. Para alguns, a questão racial é a que menos importa na obra. Esses veem o livro como um manifesto contra qualquer forma de opressão do indivíduo. Para outros, trata-se da mais impressionante denúncia dos efeitos deletérios de uma sociedade racista. De um lado ou de outro, reconhecimento; em todos os cenários: triunfo estético.
Ellison conseguiu desfazer a armadilha discursiva que faz com que a trajetória biográfica de personagens negros se torne uma espécie de gincana trágica, onde o horror tem aspecto de dramalhão e mesmo a mais profunda disposição para o embate crítico tende a sucumbir em um universo de autocomiseração e tristeza. Congelado pelo seu feito, ele passou as décadas seguintes escrevendo e reescrevendo sua outra novela, até sua morte, sem nunca no entanto, liberá-la para a publicação. Three days before the shooting, publicado somente em 2009, é um camalhaço de 1543 páginas, organizado pelo professor de literatura da Universidade do Colorado, Adam Bradley, e por John Callahan, que vale especialmente para que observemos todos os caminhos narrativos que o autor hesitou em tomar.

Possivelmente – e admito que estou no campo do pensamento especulativo aqui – Ellison sucumbiu ao peso da autoinfluência. Para além daquilo que se tem chamado de literatura negra, Ellison inaugurou um ciclo que é, ao mesmo tempo, uma ruptura: uma vez que com seu Homem Invisível ele instaura, finalmente, a inegável excelência estética de sua comunidade, e por outro edifica um modelo que pautará a literatura negra durante muito tempo. Como um Chronos sem filhos, não soube superar a si próprio. Petrificou-se, perplexo com a exatidão do espelho, o mesmo espelho que atestou certa vez que ele não era invisível.
O que se pode refletir nesse aniversário de morte é que os autores podem produzir obras que destroem suas próprias origens. Se bem sucedida, essa operação produz literatura e seus próprios egos se desmancham nessa troca social. A estética se transforma no combustível das reflexões mais profundas, mas como todo combustível, por óbvio, tende a sumir, consumida no compromisso de dar movimento às coisas.


Luiz Maurício Azevedo nasceu em 1980, na cidade de Cascavel (PR). É editor e professor de literatura. É doutor em História Literária pela UNICAMP e pós-doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS. Recentemente tornou-se vegetariano e passou a acreditar que Lee Harvey Oswald agiu sozinho. Mora em Porto Alegre, com a jornalista e escritora Fernanda Bastos.
Foto: Vitor Diel.