Priscila Ferraz Pasko: Sob a luz dos ipês de Brasília, abro os braços dentro de mim (resposta a um áudio)

“Eu imagino a morte como um mergulho profundo, azul”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre foto de Paulo H. Carvalho/Agência Brasília

Nati,

Você me envia um áudio, às 7h50. Acordo cedo, portanto, a sua mensagem é o meu bom dia. Ela fala sobre o seu prazer em nadar de manhã cedinho na piscina. Juro que sinto o cheiro do cloro se misturando ao café que eu passo na caneca.

O cheiro da piscina lembra a minha infância, quando a mãe me matriculou na natação. Eu, com medo da profundidade, salivando aquele vapor carregado de cloro, enquanto outras crianças pulavam festivas na piscina. Nunca aprendi a nadar, Nati. Na última tentativa, poucos anos atrás, entrou tanta água pelo meu nariz que fiquei com dor de cabeça durante uns dois dias. Os professores se impacientavam, pois minhas costas ficavam acima da linha d’água, como um jacaré. 

Tenho medo de mergulhar. Submersa, perco o controle do que ocorre à minha volta. A água, seja ela doce ou salgada, passa a ser projetada por uma lente que eterniza as dimensões subaquáticas, assim como o universo. Perco as referências e as proporções. Além disso, é preciso sincronizar os movimentos com a respiração. Não é seguro para mim.

Sabe, eu imagino a morte como um mergulho profundo, azul. No verão, quando vou à praia, naquele mar quase sem ondas, simulo perder o medo e me escondo nas águas. Mas logo a respiração acelera, o frio na barriga se alastra pelo corpo e imagino que morrer seja muito parecido com isso: um susto diante de uma beleza desconhecida e temida. Uma correnteza que nos arrasta com força para dentro do mar.

Voltando ao áudio. Você compartilhou um pequeno relato sobre direções, movimentos, pontos cardeais e colaterais. Sua natação fica no Sudoeste, onde você morava. Hoje, sua moradia é na Asa Norte. Sabe, toda a vez que algum ponto cardeal é mencionado eu abro os meus dois braços, formando um ângulo de 180°, assim como se fazia nos primeiros anos escolares para aprender a identificar Leste, Oeste, Norte e Sul, lembra? 

Se estou acompanhada de estranhos, abro os braços dentro de mim, uma espécie de bússola interna. Aguardo ela se localizar e arrisco a indicação. Percebo que nos filmes os personagens explicam endereços escolhendo os pontos cardeais como referência. Algo como: “siga na direção noroeste (confessa, Nati, é ousado) e vire à direita”. Acho elegantíssimo e de um senso de localização invejável.

Enquanto escuto o seu áudio, abro os braços na minha cozinha, faço uma sutil rotação mais ao Sul e esbarro minha mão esquerda no microondas. Logo atrás encontro o Sudoeste. Você nada atrás do meu microondas, Nati. Inclino o meu corpo e te procuro nadando dentro do forno, mas não te encontro.

Essa deve ser a vantagem de morar em Brasília. É provável que em pouco tempo eu aprendesse a me localizar, caso morasse aí. Contudo, não tenho essa vontade. Talvez o meu destino seja nunca saber onde estou. 

[lembro agora da Gal cantando que, da próxima vez que eu for a Brasília/ eu trago uma flor do cerrado pra você. Quando vier a Porto Alegre, traz uma pra mim?]

Então, as distâncias entre a sua casa, a natação e o trabalho. Você diz não se importar em percorrê-las, porque acaba cruzando pelas áreas mais marcantes de Brasília. É um horário bonito de se ver, você me fala. Acrescenta que sai de casa às 6h, quando o sol está nascendo, a cidade com muitos horizontes, muitas árvores. Tão lindo, você descreve. E eu acho lindo também, enquanto passo manteiga na torrada com os olhos cheios d’água em direção ao Sul.

Você continua contando sobre os ipês amarelos e do quanto a beleza deles mudam no decorrer do dia. Antes de chegar na natação, os ipês contrastam com a cor rosada do céu. Após a natação, a partir das 7h, o sol mais brilhante. É quando você passa pelo Eixo Monumental, pela Esplanada, Eixão. Tem amplitude, é tão lindo. Eu sei, Nati, porque eu estou vendo tudo isso com você. Estou nadando pelo asfalto, que tem cheiro de café e cloro, dando braçadas na terra vermelha de Brasília, espiando os ipês rosados, ou o céu amarelo, ou o horizonte brilhoso, da mesma cor do mamão com granola que como no café da manhã.

Muito obrigada pelo passeio, pela viagem. Faz todo o sentido você compartilhar essas pequenas riquezas comigo, tanto que estou há semanas pensando nelas. Assim que eu passar por um ipê, aguardarei a luz apropriada para descrevê-lo a você.

Beijo, saudades muitas.

Priscila Ferraz Pasko (1983 – Porto Alegre) é escritora, jornalista freelancer na área cultural e graduanda em História da Arte (Ufrgs) . É autora do livro de contos “Solo rachado por dentro” (Figura de Linguagem, prelo), “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019) – Prêmio Açorianos 2020 na categoria conto. Também integra a coletânea “Novas contistas da literatura brasileira” (Zouk, 2018). Paralelamente, Priscila se dedica à dança contemporânea e a experimentos em videodança. Se interessa ainda por artes visuais, pelo processo criativo/vivência de artistas mulheres e sonhos. Divide o teto com os seus dois gatos, a Pemba e o Arruda.

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