Simone Mello: Uma Maranhense

“Firmina veio fazer esta provocação em sua escrita, questões referentes à desigualdade social, trabalho escravo e apropriação e exploração dos corpos negros visando lucro”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio

Maria Firmina dos Reis, uma voz além do tempo, ou seria o tempo e a voz de uma mulher que revolucionou, transformou a história e a sociedade. Numa época em que mulheres escritoras, poetisas, artistas não podiam assinar o seu próprio nome, e nem atuar na política, viviam sob o regime autoritário de uma sociedade machista, racista e patriarcal. No século XIX, somente os homens tinham este direito de assinar o nome, as mulheres apresentavam sua arte, sua escrita, suas inspirações usando pseudônimo. Muitas destas mulheres viveram no anonimato, sem ninguém ter nunca conhecido de fato as verdadeiras obras dessas artistas. Foram esquecidas pelo tempo. Por este e outros motivos, Maria Firmina assinava Uma Maranhense.

A trajetória intelectual de Maria Firmina dos Reis, bem como o conjunto de biografia, é considerada incomum se compararmos com os  demais escritores e personalidades do seu tempo. A escritora nasceu no dia 11 de março de 1822 na cidade de São Luís do Maranhão. Em seu registro consta o nome dos pais: Leonor Felipe dos Reis e possivelmente João Pedro Esteves. Firmina ficou órfã aos cinco anos de idade, vivia sob a condição de segregação racial e social. Ainda pequena, a menina mudou-se para a Vila de São João de Guimarães, foi acolhida na casa de uma tia materna — este acolhimento foi fundamental para a sua formação; teve apoio de um primo por parte de mãe e do jornalista, escritor e gramático Francisco Severo do Reis. Aos vinte anos a moça é aprovada em um concurso público, sendo a primeira professora efetiva a integrar os quadros dos magistérios.

 Firmina de fato revolucionou a história, fundou a primeira escola mista e gratuita em São Luiz do Maranhão para pessoas de baixa renda e principalmente meninas que ficaram excluídas deste processo de formação intelectual. A preocupação de Maria Firmina era de acolher, pois ela já havia vivido um momento de exclusão. Devido às polêmicas e questionamentos, a escola teve que ser fechada.

Ao observar a sociedade e o cenário em que os escravizados viviam, a autora trouxe esta triste e verdadeira realidade para os seus textos. As inquietações e os incômodos fizeram com que a maranhense desenvolvesse mecanismos de escrita. Com um olhar crítico perante aqueles que oprimiam, que perseguiam e desumanizam o seu semelhante, viu e ouviu relatos de dores, sofrimentos, e a solidão que o cativeiro construiu, sobretudo o abalo emocional, físico e mental. Maria Firmina  foi literata, intelectual, escreveu a novela indianista Gupeva, em 1861, e Cantos à Beira Mar, de poesias. Muito atuante na imprensa, escrevia para jornais e folhetins, era pesquisadora, compositora e folclorista.

A autora passou por um processo de embranquecimento, apagamento e silenciamento.  Sua escrita denunciava as atrocidades, o preconceito, a objetificação, a apropriação do corpo da mulher negra e do homem negro. Firmina resistiu bravamente, sem ter se casado, sem ter homem algum ao seu lado, resistiu a uma época em que a literatura era escrita somente por homens brancos. Jamais uma mulher negra poderia produzir material, conteúdo literário. Este privilégio era direcionado aos cânones.

Firmina veio fazer esta provocação em sua escrita, questões referentes à desigualdade social, trabalho escravo e apropriação e exploração dos corpos negros visando lucro, enriquecimento e poder, em detrimento do abuso e da violência sobre estes corpos.  Humanizar, dar voz, protagonizar os sujeitos que não tinham identidade, não tinham liberdade, mas tinham um dono, e este dono era carrasco e escravocrata.

O tráfico do povo negro não foi um processo natural, como muitos autores brancos citam em seus textos, e até romantizam. Teve derramamento de sangue, laços familiares foram cortados e separados pelos grilhões e pelo oceano. A autora retrata e aborda este tema em seu conto A Escrava, de 1887, e, em seu romance Úrsula, publicado em 1859, onde a africana preta Susana, personagem do romance, em um momento de sua fala, narra detalhadamente o ato, a barbárie e o extermínio. Muitos não suportaram a fome, a doença, e a opressão, aos poucos os corpos foram desfalecendo e logo jogados no oceano, servindo de alimento para os peixes.

A redescoberta do romance abolicionista Úrsula, feita pelo pesquisador Horácio de Almeida, trouxe enriquecimento, um novo olhar literário. A partir desta perspectiva, deste novo olhar, a literatura afro-brasileira segue os passos de Maria Firmina, e de escritoras que vieram depois, como: Lélia Gonzales, Carolina Maria De Jesus, Conceição Evaristo, Geni Guimarães, Cristiane Sobral, entre outras.

Maria Firmina não somente contribuiu, mas nos deixou um legado, um vasto material literário a ser pesquisado, estudado, discutido em salas de aulas e nas universidades. Professora, mulher negra, musicista abolicionista, construiu escola, sofreu invisibilidade, atuou nos movimento sociais em defesa do povo negro. Esteve à frente do seu tempo, pioneira do romantismo brasileiro. Enfrentou a meritocracia, se empoderou e empoderou outras mulheres. 

Hoje, na contemporaneidade, vejo o quanto as obras de Maria Firmina sobreviveram ao tempo, e aos fatos históricos. Textos, narrativas, contos que estavam guardados esperando o momento, o ressurgimento, a redescoberta feita pelo pesquisador Horácio de Almeida, em 1962. A literatura e a leitura transformam nossas vidas, nos dão entendimento, levando o indivíduo à reflexão, à liberdade de pensamento, nos coloca livres para escrever, produzir e contar a nossa própria história e a história dos nossos.

Simone Mello, poeta, formada em sociologia pela faculdade UNIP. Mora em Porto Alegre/RS. Mulher preta, casada, mãe de dois filhos, Jórdan e Péterson. Integrante do CEN – Coletivo de Escritores Negros. Participa como colunista do Jornal Virtual Mente Ativa. Participante do Sarau Sopapo Poético e de outros saraus de Porto Alegre. Integrante do Grupo Face de Ébano, atua como militante da igualdade e causas sociais. Tem texto publicados nos livros Coletânea Escrituras Negras II, Coletânea Poemas à Flor da Pele, Projeto Lendo Mulheres Negras, entre outros.

Apoie Literatura RS

Ao apoiar mensalmente Literatura RS, você tem acesso a recompensas exclusivas e contribui com a cadeia produtiva do livro no Rio Grande do Sul.

Avatar de Literatura RS
Literatura RS

Deixe um comentário