Guilherme Smee: Uma breve história e panorama dos eventos de quadrinhos ao redor do mundo e no Brasil

“Ninguém sai sem um amigo novo de um evento de quadrinhos”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução

Se o cenário dos quadrinhos independentes do Brasil está aquecido atualmente, muito desse movimento se deve à popularização dos eventos e feiras que promovem a participação de quadrinistas como expositores. Os eventos não ajudam apenas nas vendas de quadrinhos, mas também na profissionalização do setor, uma vez que muitos deles permitem que os criadores troquem experiências, técnicas e estratégias de venda. Este tipo de acontecimento que movimenta numerosos fãs de quadrinhos acontece ao redor do mundo e vem sendo apresentado para o público pelo menos desde a década de 1940. No Brasil, desde a década de 1950. 

Em 18 de junho de 1951 foi realizada em São Paulo a Primeira Exposição Internacional de Quadrinhos, um primeiro modelo do que viriam a ser as convenções de fãs nos dias de hoje. Foi organizada por Miguel Penteado, Reinaldo de Oliveira, Álvaro de Moya, Jayme Cortez e Syllas Roberg. Depois, a exposição, que contou com artes originais de grandes quadrinistas da época como Alex Raymond (Flash Gordon), Al Capp (Ferdinando), Milton Caniff (Steve Canyon) e Hal Foster (Príncipe Valente), foi compilada no livro Anos 50/50 Anos, publicado no início do século XXI. Embora pioneira no Brasil, exposições semelhantes foram trazidas ao público dos Estados Unidos, França e Itália na década anterior.

Entretanto, a primeira convenção de histórias em quadrinhos e produtos relacionados, com moldes mais ou menos parecidos com os de hoje em dia, foi realizada em Nova York, em 1964. Embora tenha o mesmo nome da New York Comic Con realizada atualmente, sua organização e estrutura nada tem a ver com a edição inaugural. Nesta primeira edição, a convenção atraiu apenas uma centena de convivas. Eventos recorrentes de quadrinhos nos Estados Unidos daquela época foram a Detroit Triple Fan Fair e a Academy Con. Mas as convenções de quadrinhos e de fãs da cultura pop só foram se firmar a partir do advento da San Diego Comic Con International, que surgiu no ano de 1970 na costa oeste dos Estados Unidos. Até 2017 a San Diego Comic Con Internacional era considerada pelos meios de comunicação como a principal convenção do mundo, entretanto perdeu seu posto naquele ano para a brasileira Comic Con Experience, sobre a qual falarei mais para a frente.

A Europa, diferente dos Estados Unidos, possui a tradição dos Festivais de Quadrinhos, esses e forma diversa das suas versões estadunidenses costuma focar mais em quadrinhos que em cultura pop em geral. O primeiro festival de quadrinhos a ficar famoso internacionalmente foi o Festival de Lucca, na Itália, que começou com o nome Salone Internazionale del Comics em 1966 e hoje em dia se chama Lucca Comics & Games. Mauricio de Sousa, Neil Gaiman, Carlos Trillo, Milo Manara e os Irmãos Hernandez já foram homenageados em Lucca.

Outro festival europeu de quadrinhos muito festejado mundialmente é o festival de Angoulême, que é realizado na França. Os festivais de quadrinhos europeus, desde Lucca, têm a tradição de serem realizados em cidades pequenas, movimentando todo o comércio e cultura da cidade ao redor destes eventos. Oficialmente chamado de Angoulême International Comics Festival, sua primeira edição ocorreu em 1974 e seus prêmios são muito prestigiados e cobiçados por quadrinistas do mundo inteiro. Por sua vez, em Portugal, onde os quadrinhos são chamados de banda desenhada, são os festivais Amadora BD, inaugurado em 1989, e o Festival de Beja, que teve a sua décima sétima edição em 2022. 

O Japão, o maior mercado consumidor de quadrinhos do mundo, também conta com um festival de quadrinhos. Em meio a um período de grandes mudanças na produção de mangás, em 1975 foi criado o Comiket, que contou com apenas 700 pessoas como público de sua primeira edição. Este evento costuma acontecer pelo menos duas vezes por ano na capital do Japão, Tóquio. É considerado o maior festival do gênero no mundo.

No Brasil, o formato atual das convenções de quadrinhos tem seu início na Bienal Internacional de Quadrinhos do Rio de Janeiro, realizada em 1991, que teve a presença de figuras ilustres como Will Eisner, Moebius e Sergio Bonelli. A Bienal se realizou no Rio de Janeiro por mais um ano, 1993, mas em 1995 o evento foi cancelado por falta de patrocínio. Se mudou definitivamente para Belo Horizonte em 1997 e passou a se chamar Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), a partir de 1999, tendo ocorrido, com poucas exceções, de dois em dois anos na capital mineira. O FIQ é uma dos mais tradicionais e mais queridos eventos do tipo pelos quadrinistas. Tem entrada franca para o público, oficinas de formação e rodadas de negócios com editoras. O evento já foi realizado em diversos centros de eventos de Belo Horizonte, mas ocorreu principalmente na Serraria Souza Pinto.

Em 2011, Curitiba também passou a ser base de um evento bianual de histórias em quadrinhos. Começava a GibiCon n. 0, com o subtítulo “Convenção Internacional de Quadrinhos de Curitiba”, nos moldes dos festivais europeus, quando o evento se espalha por diversos lugares da cidade. A GibiCon 1 comemorou os 30 anos da Gibiteca de Curitiba e a edição de número 2 passou a ser realizada em um local fixo, o MuMa, Museu Municipal de Arte. Com o fim da parceria com José Aguiar, o evento passa a se chamar Bienal de Quadrinhos de Curitiba em 2016. Desde sua primeira edição o evento curitibano conta com entrada gratuita para o público, assim como o FIQ. 

Bastante inspirada nos moldes da San Diego Comic Con International, em 4 de dezembro de 2014 surgiu a CCXP, inicialmente conhecida como Comic Con Experience. Organizada por um pool de empresas que são bastante conceituadas no mercado da cultura pop, desde sua primeira edição já foi considerada o maior evento de quadrinhos a ser realizado no país. Embora o foco da CCXP não seja exatamente os quadrinhos, o evento ficou consagrado por ser extremamente concorrido pelos quadrinistas e mesmo assim comportar a maior área de artistas de todos os eventos do ramo no país e no mundo. Como falado anteriormente, em 2017 superou em público e tamanho a convenção de San Diego, com o local do evento, o São Paulo Expo, precisando ser ampliado para comportar toda a movimentação e adesão do público ao evento. A CCXP também produziu ramificações. Em 2017, em Recife, aconteceu a CCXP Tour e em 2019 e 2020 a CCXP teve sua versão alemã na cidade de Colônia. 

No Rio Grande do Sul, embora a Grafar (Grafistas Associados do Rio Grande do Sul) produzisse diversos eventos relacionados aos quadrinhos como o Salão Internacional de Imprensa, que geralmente acontecia na Usina do Gasômetro, até 2011 não tivemos eventos dedicados aos quadrinhos nos moldes de uma convenção no estado. Isso mudou com a instituição da Comic Con Rio Grande do Sul (CCRS), que começou em 2011 com o nome de Multiverso ComicCon. O nome CCRS passou a ser usado em 2015, também mudando da capital Porto Alegre para a cidade-gêmea Canoas, na região metropolitana. 

Outro evento que agradou muito ao público e aos expositores foi a Parada Gráfica, com entrada gratuita e realizada no Museu do Trabalho de Porto Alegre. Embora seu foco fosse nas artes gráficas muito mais que nos quadrinhos, quadrinistas de diversas partes do país prestigiaram o evento vendendo seu trabalho para o público e realizando exposições e oficinas de quadrinhos. O evento teve três edições a partir de 2013. 

Também na Feira do Livro de Porto Alegre ocorre o Mutação, o braço quadrinista da feira municipal de publicações. Embora tenha começado com um espaço grande dedicado aos quadrinhos na edição de 2006 da Feira do Livro, com arena de debates e feiras, além de uma publicação dedicada exclusivamente para os quadrinhos, o Mutação vem recebendo um espaço cada vez mais reduzido pelos organizadores da Feira do Livro de Porto Alegre, mesmo que tenha ocorrido concomitante a todas edições da feira desde então. 

Antes da pandemia cair como uma bomba nos eventos de quadrinhos, em 2019, eles começaram a procurar também nichos identitários na realidade brasileira. Com enorme adesão do público e com entrada gratuita, em 2019 realizaram-se em São Paulo as primeiras edições da PocCon e da PerifaCon. A primeira, é uma feira de quadrinhos e artes gráficas com artistas LGBTQIA+, mas que não é restrita somente a esse público. O nome vem de uma apropriação de um termo pejorativo, poc, que denota pessoa queer escandalosa. Já a PerifaCon mira em artistas, mas não apenas, e público das periferias das grandes cidades como São Paulo, com uma programação voltada para dar visibilidade às pessoas negras, marginalizadas e de baixa renda.

Durante a quarentena da pandemia de COVID-19, nos anos de 2020 e 2021 muitos eventos de quadrinhos precisaram apelar a versões digitais de suas convenções. Entretanto, essas iniciativas não foram muito bem sucedidas em atrair público e principalmente em fazer girar as vendas dos artistas participantes. O motivo é muito simples: as convenções de quadrinhos são espaços em que as pessoas confraternizam, trocam ideias sobre o que mais gostam, e fazem amigos. Ninguém sai sem um amigo novo de um evento de quadrinhos. O fator remoto da internet dificulta o contato, seja com amigos ou com artistas, e a fisicalidade dos produtos oferecidos na hora para os compradores também é um atrativo importante. Por sorte, as vacinas contra a Covid-19 chegaram e os eventos, com todas as precauções sanitárias necessárias, foram liberados aos poucos em 2022. 

Existem muitas outras convenções de quadrinhos ao redor do Brasil. Em Santa Catarina, o Circuito Catarinense de Quadrinhos e a Comic Con Florianópolis vêm crescendo em espaço e em número de participantes. No Nordeste, eventos como a SANA, são muito queridos e representativos na região. Santos possui dois eventos que já são tradicionais, a Santos Comic Expo e a Santos Geek Fest. Muitos outros eventos surgem ao redor do país. Alguns duram mais, outros rendem apenas uma edição. Existem aqueles que geram escândalo e estarrecimento na comunidade quadrinista, como o fiasco da UC CONX em 2022.

O trabalho de organizar, ou ainda de fazer a curadoria de uma convenção ou feira de quadrinhos não é simples nem fácil. Senti isso na pele ao organizar este ano as duas edições da Feira Gibizeira, que ocorreu na Gibiteca da Biblioteca Pública do Estado. Com um número de equipe reduzido e verba quase inexistente, conseguimos trazer e renovar um pouco o público da biblioteca e ainda distribuir as duas edições gratuitas do Almanaque Gibizeira, uma vitrine dos participantes do evento. Desejamos que o evento perdure e que as políticas públicas dos próximos governos apoiem os quadrinhos, seja em eventos, em editais ou em cursos de profissionalização da área. Afinal, convenções e feiras de quadrinhos são um momento de fazer amigos e de passar um bom tempo conversando e se informando sobre aquilo que nós, fãs dessas narrativas mais gostamos: quadrinhos. Basta ver o número de tráfego de pessoas neste tipo de eventos. É através deles que fazemos amigos e estamos conquistando cada vez mais o resto do mundo para a causa dos quadrinhos.

Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges

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