Um manifesto sobre como estamos nos manifestando
Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre foto de Flor Reis
Olha, sinceramente, preciso fazer um desabafo, não vai ser fácil, e nem sei se vou conseguir dizer tudo, mas estou cansado, ou melhor, estou exausto, e estou exausto de deixar isso entalado só para evitar o conflito, e também não magoar pessoas que me são muito queridas, por mais que eu entenda de onde está vindo essa questão, essa impotência, mas, olha só, de quatro em quatro anos é essa mesma merda, a mesmíssima merda, o Nordeste é burro, o Nordeste é uma maravilha, o Nordeste não sabe votar, o Nordeste vai nos salvar, o Nordeste é analfabeto, o Nordeste tem as melhores notas no ENEM, o Nordeste é o céu, o Nordeste é o diabo, o Nordeste nem existe, você já leu autores do Nordeste?, mas você nem parece nordestino, Davi, você nem gosta de pimenta, que baiano é esse?, estou há quase dez anos na região Sul, já é minha terceira eleição presidencial morando aqui, e nada muda, nada, absolutamente nada, você abre a internet e surge uma enxurrada infinita de memes e de textões e de stories e o Nordeste é isso e o Nordeste é aquilo, o Nordeste tem que acabar, o Nordeste está carregando o país nas costas, meu deus eu quero morar no Nordeste, mas depois de me aposentar, claro, porque agora é trabalho e lá a situação é mais difícil, né, pois é, é bem difícil, e nada muda, nada muda porque o que muita, muita, muita gente não percebe é que, nessa gritaria toda, nesse tiroteio de postagens, nesse vômito de ansiedade, o Nordeste vira apenas um objeto, um espelho, um band-aid para a ferida narcísica do Sul-Sudeste, e que, nos quatro anos seguintes, não só é esquecido, largado na gaveta meio emporcalhada das redes sociais, como reconduzido ao lugar de subalterno na hierarquia moral do país, nossos problemas continuam, nossa falta de estrutura continua, nossa pobreza continua, nossas disputas ideológicas continuam, tudo continua igual, cadê investimento federal, cadê emprego, cadê escola, hospital, transporte público, cadê o turista gastando dinheiro por lá ao invés de torrar tudo naquele mochilão na Europa, cadê projeto sério e não somente paliativo, cadê, hein, cadê, temos desigualdades gritantes, é assustador ver a pobreza e a riqueza conviverem tão de perto, é desesperador ver que esse barril de pólvora já deveria ter explodido há pelo menos duzentos anos, mas que a tensão continua e continua e continua e não para de matar os pretos, os pobres e os periféricos, é de revirar qualquer estômago, são nove estados, porra, cada um com seu sotaque, sua história, sua particularidade, a área do Nordeste é quase do tamanho da Europa Ocidental, faz, inclusive, um frio do caralho na Chapada Diamantina (e em Conquista), Salvador é a terceira maior cidade do país e a terceira com maior número de ricos 3A, mas temos também o Alagados e a feira do rolo, Recife tem praia, mas tem tubarão, o Rio Grande do Norte produz cerca de 90% do sal do país, Teresina fica à beira de um rio bem longe do litoral e o Piauí possui o maior e mais antigo sítio arqueológico da América, Sergipe não aguenta mais ser chamada de quintal da Bahia, um bairro de Maceió simplesmente afundou por causa de uma empresa-cujo-nome-tenho-até-medo-de-falar-pra-não-receber-processo e mesmo assim a cidade promove uma bienal literária das mais bonitas, Fortaleza tem uma saúde psiquiátrica de qualidade (onde minha mãe, inclusive, fez residência como graduada em psicologia), São Luís exala amor pelo reggae, a Paraíba organiza o maior São João do mundo, porque, sim, tem reggae, tem rock, tem forró, tem carnaval (e também todos os invisíveis que dormem debaixo de um isopor pra não perder o lugar da venda e ganhar um dinheiro que só aparece mesmo naqueles dez dias do ano), tem a porratoda, e, por mais que eu não possa falar pelos meus conterrâneos, acho que não é exagerado dizer: sim, é bastante compreensível o que está acontecendo, do ponto de vista lógico e social, mas, por favor, pelamordedeus, parem de nos tratar como se fôssemos somente um pedaço do mapa preenchido por uma turba ignara, festeira e que vai resgatar o Brasil do fundo do poço eleitoral, o Nordeste não é lugar de gente burra, o Nordeste não quer salvar ninguém, o Nordeste só quer existir em paz e com dignidade, sem ninguém enchendo nosso saco e tentando imitar nosso sotaque.
No mais, vamos levantar a cabeça. O jogo está longe de acabar. Se queremos mesmo fazer um Brasil melhor para todo mundo, e tirar da presidência esse energúmeno que hoje ocupa o Planalto e faz troça das pessoas que morreram sufocadas pela covid, vamos precisar de muita sensatez, muita resiliência e muito trabalho. Um esforço de vinte, trinta anos até desaparecer da nossa boca esse gosto amargo de fracasso.
Até a vitória, sempre.
Texto originalmente publicado no blog do autor em 6 de outubro de 2022.

Baiano, nascido em 1986. Entusiasta de basquete, de hidroginástica e de viagens de ônibus. Doutor em Escrita Criativa. Autor de “Talvez não tenha criança no céu”, “Mônica vai jantar”, livro finalista do prêmio SP de Literatura, e “17 de abril”.
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