“Sou desse time que vê o carnaval como uma ferramenta de alegria pra espantar o medo, como a celebração da forma que o mundo devia ter. A festa da resistência”
Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio
No ano de 2019, a Estação Primeira de Mangueira entrava na avenida com o samba História pra ninar gente grande, querendo um país que não está no retrato. Era um ano grosseiro para aqueles que acreditam na democracia e na união entre pessoas, povos e tempos. Aquela letra rasgou a avenida expondo a nossa ferida aberta. Falava em malês, caboclos de julho, anos de chumbo, homenageava a luta de Marielle, mencionava os dragões de Aracati.
O centro do país, em direção ao norte, esteve representado naquele samba. As histórias que a história não conta tinham ganhado um espaço para serem vistas nesse espetáculo que rompe fronteiras e espalha beleza e conhecimento. Acredito no potencial de formação que cada escola carrega e renova todos os anos.
A festa mais popular do planeta é sempre a chave encantada de um portal.
Sei que as pessoas se dividem em dois grandes grupos quando se trata de carnaval: os que o amam e aqueles que não o entendem. Como em qualquer paixão deixamos de lado o que nos incomoda, ampliamos o que nos agrada. Sou desse time que vê o carnaval como uma ferramenta de alegria pra espantar o medo, como a celebração da forma que o mundo devia ter. A festa da resistência.

Pensando nisso e na amplitude de elementos que a escola levou para avenida, estranhei a ausência absoluta de referências ao Sul do país. Fui atrás, queria conhecer as histórias que não estão nos retratos aqui no Rio Grande do Sul. Nunca pensei que encontraria uma resposta tão literal. No Palácio do Governo há uma pintura de Aldo Locatelli denominada A formação histórico-etnográfica do povo Rio-grandense. Nela, estão retratados mulheres e homens tipicamente alemães, italianos, portugueses. Até mesmo os indígenas estão representados ali. É uma obra belíssima, de um pintor importante e muito talentoso. Obra de se perder nos detalhes, na beleza, na precisão.
Estaria tudo perfeito não fosse a ausência absoluta de negros no quadro com esse título.
E foi assim, descortinando imagens, que cheguei nos episódios que recolhi para colocar no livro O Mistério das Histórias Invisíveis. São tantos e tão graves que muito precisará ser escrito sobre eles ainda.
Acredito na educação como fonte de conhecimento pleno, acredito na literatura como ambiente para se guardar o tempo e disseminá-lo, por isso escrevi um livro para a infância. Talvez as crianças se incomodem mais com o sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado e assim possam contar novas histórias.
Em tempo: esse ano a escola porto-alegrense, com sede no bairro Santana denominada Acadêmicos da Orgia, homenageou Oliveira Silveira. O que foi uma bela oportunidade, para aqueles que assistiram, conhecer esse poeta tão fundamental para a nossa história.
Ainda não conhece?
Talvez esteja faltando um pouquinho de carnaval.
Nota da autora
As frases grifadas são versos do samba enredo Histórias para Ninar Gente Grande, vencedor do carnaval de 2019 no RJ e teve como compositores Deivid Domenico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola Ronie Oliveira, Manu da Cuica e Danilo Firmino, e como carnavalesco Leandro Vieira.

Chris Dias nasceu em Porto Alegre, onde vive até hoje. É escritora e ministra cursos para professores e interessados na leitura literária e produção cultural para a infância. Há 18 anos teve o seu primeiro livro publicado, e desde lá acumula 42 títulos em editoras como Editora Globo, FTD e Elefante Letrado. Entre seus principais prêmios estão o Açorianos de Literatura, o Prêmio AGES e já foi finalista no Jabuti.
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