Maiara Alvarez: Desacomodar e acolher podemos todes

“A literatura, assim como as pessoas, serve para desacomodar e acolher”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução

Era um sentimento sem rosto, daqueles que abrem espaço na nossa mente para as dúvidas mais cruéis: se a gente gosta do jeito que a gente é, e se alguém além da nossa mãe vai gostar de verdade de nós”
(Sobre o fundo azul da infância, p.61)

Se posso contar isso (contar do verbo criar um conto literário), conheci o Tônio em um sábado de manhã. Ele era um de uma turma de eu já não me lembro quantos, mas, para dar uma ideia, não cabíamos em uma sala pequena e acabamos por ocupar o espaço de eventos do prédio. Era uma das primeiras vezes (senão a primeira) que eu lecionava o meu atual ofício: preparar e revisar textos literários.

Eu estava nervosa, claro, mas depois de anos sendo teacher, estar na frente de um grupo de pessoas era algo que eu enfrentava com uma máscara muito bem construída de confiança, de “eu não vou deixar vocês na mão”, “confiem em mim”, “eu sou acessível”, “sim, eu vou te ajudar a abrir o pacotinho do lanche ou lavar as mãos”. Bom, dar aulas para crianças e em outra língua, era, verdade, mais complexo. Dar aula para adultos, entretanto, que, assim como eu, têm a língua brasileira como mãe, era um desafio com avaliadores mais criteriosos. Me senti novamente prestes a dar piruetas em uma sessão de solo de competição de ginástica olímpica.

“A fome não permitia acreditar em conceitos abstratos, como céu, paraíso e outras bobagens que concluí existirem para nos entregar respostas fáceis, para nos fazer fugir daquilo que também existia em nós e que começávamos a não controlar”
(Terra nos Cabelos, p. 97).

Mas eu tava falando do Tônio, né? Ele era um dos atentos, criteriosos. Seus olhos, entretanto — me deixem poetizar também — me transmitiam uma magia rara de dominar: a empatia. Ele estava feliz, satisfeito, interessado, e eu, para ele, era uma igual, uma pessoa que tinha algo para dizer, mas que poderia cometer erros ao mesmo tempo que era brilhante.

Foi uma ótima manhã, e não só por causa dele, mas por todas as pessoas que estavam ali me motivando a algo que talvez elas não imaginassem: a começar e a continuar, tudo ao mesmo tempo. Cortamos as horas de estudos juntos ao meio com um almoço no restaurante da frente, conversando animadamente sobre nossos sonhos literários. O santo bateu.

“Como o eco de um grito, muito da substância do que éramos feitas se transformou”
(Terra nos Cabelos, p. 91).

Depois, eu e os colegas tivemos uma oportunidade: ler um conto do Tônio em primeira mão. O tempo passou e eu continuei, tanto revisando quanto investindo em uma carreira com quase zero de perspectiva financeira: a literatura. E eu posso ter dados passos em falso, mas não errei, tanto em começar como em continuar. O Tônio também não errou, na verdade, ele chegou em um lugar que pessoas pedantes — ou que, como eu, gostam de tentar lembrar de vocábulos esquisitos, o que deve ser pedante mesmo — chamam de epítome: ser o vencedor de um concurso nacional de relevância crítica e midiática, o Prêmio Sesc.

Eu confesso que fiquei realmente muito alegre, aquela alegria boa que vem da conquista do outro e não nos custa nada. Bora de brincadeira, não custou mesmo, pois eu só fui investir mesmo na coletânea premiada de contos do Tônio anos mais tarde, quando nos vimos novamente em uma Feira do Livro de Porto Alegre. Eu, na plateia, ele, no lugar de maior destaque, o palco. E, se é pra confessar, confesso também que, enquanto Tônio explicava sobre seu livro eu pensava: um homem com um livro todinho falando só sobre mulheres?

“Estou cansada da metáfora do sangue, escrever é sangrar e o escambau. […] Agora há uma fila de escritores que sangram em teclados ergonômicos. […] Esse guri. Esse palestrante de primeiro livro querendo explicar o que o leitor deve entender. O mais próximo do sangue que chegou foi o nojinho do absorvente da namorada”
(Terra nos Cabelos, p. 62).

E, embora eu vá seguir feliz sendo indagadora, está longe de mim ser uma crítica literária (well, eu trabalho com leitura crítica, mas isso é outra história) e eu me agarrei aos olhos empáticos, aos nossos santos que jogaram animadamente pebolim juntos todas as vezes que nos vimos, e comprei o livro do Tônio. Depois pedi autógrafo, claro, que de boba eu tenho várias coisas, mas de vez em quando eu falho em ser boba também.

Eu já tinha lido o Tônio (óia, o homi já é metonímia, disse a pedante aqui) aqui e acolá, mas nada só dele, todinho dele. Aí eu li. E me desacomodei.

“Pegou meu menino pelos encaracolados como se eu não estivesse ali, como se eu não tivesse pés de cruzar mundo, braços de manter casa em pé”
(Terra nos Cabelos, p.12).

Diz a descrição que os contos de Terra nos Cabelos “se propõem a uma espécie de investigação do íntimo, das descobertas do outro, e instigam o leitor a mergulhar na vida dos personagens. (…) São, todas elas, personagens em contenda com o mundo (…)”. O povo que faz sinopse também é um pouco pedante, diga-se. Mas é tudo verdade o que diz aí, são mulheres em duelo com o mundo. E eu vi elas, mais do que me vi nelas, e é essa a lição importante da empatia, que eu já tinha experimentado no olhar do Tônio e que busco exercitar na vida.

Mais do que tudo, a autoria não se coloca no lugar dos outros, visto a impossibilidade da natureza desse ato. A autoria literária observa o outro, imagina o outro, se importa com o outro. E aí cria um registro dessa mágica relação com o outro, que, no final, lê o livro. E Tônio é um autor, com uma autoria de mão cheia.

“Não me tornei uma mulher triste, apenas tentei conservar o que pude do passado”
(Terra nos Cabelos, p. 18).

Se eu posso definir esse livro, vou jogar alguns tópicos que surgiram da minha leitura e que eu trouxe para provocar o pessoal do Clube de Leitura (uma iniciativa que ministro para a Edê, que é uma Escola de Escritores): a força imagético-poética; o suspense; a mulher imaginada versus a mulher irreal; as mulheres que não tem(os) mais tempo-espaço-lugar de ser(mos); as nossas próprias mulheres que matam umas às outras; a busca pelas nossas profundidades; às vezes a gente precisa ir ainda mais longe; a solidão imposta às mulheres sem homens; antes do luto, a negação do duelo etc.

“Quanto mais ele voltava, mas eu sabia que o inferno é quando perdemos o controle sobre o que os outros podem fazer conosco”
(Terra nos Cabelos, p.34).

Meu contato mais recente com o Tônio foi para ler o outro livro dele, todinho dele, que saiu no mesmo ano, intitulado Sobre o fundo azul da infância. A edição, difícil de achar, foi encomendada diretamente com o autor, que lidou com todos os vai e vem de eu encomendar livros para todo um grupo de cantos diferentes do Brasil.

As minhas queridas escritoras-alunas tiveram o tratamento merecido da sensibilidade preocupada e atenta do Tônio: os livros chegaram, cada um, com uma dedicatória exclusiva para cada. Era só o início de uma leitura que agora, ao invés de nos desacomodar, nos acolheu.

“— A senhora foi dançarina de verdade?
— Todos nós somos dançarinos de verdade”
(Sobre o fundo azul da infância, p. 94).

Neste livro, a apresentação de uma outra criatura fofa dessa humanidade, a Dalva Maria Soares, definiu bem: é um livro sobre “a infância não como condição etária, mas como condição humana”
(p. 11).

Chegamos à conclusão de que a literatura, assim como as pessoas, serve para desacomodar e acolher mesmo. Nossas experiências humanas.

Ah, e esqueci de contar que o Tônio nos acompanhou em uma das noites que discutimos seus livros. Admiradas, ouvimos suas histórias, seus causos, seus enfrentamentos, suas experiências. E conquistamos ele ao ponto de convencer o contista a nos ler um dos seus poemas. É, hoje estou romântica.

Sobre o autor
Tônio Caetano é escritor, especialista em Literatura Brasileira pela PUCRS e servidor público municipal. É filho de Virginia e Armindo, pai da Safira e dindo do Guga, da Sarah e do Ique. Cresceu correndo, com seis irmãos, pelas lombas da Vila Vargas, periferia de Porto Alegre. É membro da Academia de Letras do Brasil, seccional Rio Grande do Sul, cadeira 136, Patrono Lima Barreto. É autor dos livros Terra nos Cabelos (Prêmio SESC de Literatura 2020, na categoria Conto) e Sobre o fundo azul da infância (Prêmio Academia Rio-Grandense de Letras 2021, na categoria Narrativa Curta). É uma pessoa em busca da própria voz e do seu lugar na luta que cabe a cada um diante da página em branco, da realidade e de si.

Terra nos Cabelos
Tônio Caetano
112 p.
R$ 44,90
Record
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Sobre o fundo azul da infância
Tônio Caetano
102 p.
Venas Abiertas Editora Popular

Maiara Alvarez é bacharel em Jornalismo e especialista em Leitura e Produção Textual. Conta histórias desde que aprendeu a repeti-las de forma oral. Foi criança que inventou palavras. Jovem, notou que poderia criar algo maior. Trabalhou no terceiro setor, participando de eventos literários e escrevendo projetos, um deles premiado nacionalmente. Escreve, edita e fotografa. Atua com revisão desde 2011, com jornais, relatórios, produções acadêmicas e ficção, e hoje ministra uma oficina na área.
Foto: Acervo pessoal

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