“Neste ano, selecionei vinte obras em quadrinhos que abrangem diversos gêneros e estilos”
Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução
Mais um ano se encerra, mais uma lista que surge. Como lembro todo ano, esta lista não se refere aos quadrinhos exatamente lançados no ano que passou, mas nos que tive a oportunidade de ler naquele ciclo. Por isso, não são apenas quadrinhos de 2023 que estão nesta lista, mas aqueles que pude ler no ano que passou. Neste ano, selecionei vinte obras em quadrinhos que abrangem diversos gêneros e estilos, inclusive o de super-heróis, embora este gênero em sua versão mais fiel tenha poucos representantes na lista.

50 CONSELHOS QUE OS JOVENS NÃO PEDIRAM, DE CRIS CAMARGO
Me identifiquei extraordinariamente com este quadrinho autobiográfico da amiga Cris Camargo, porque ela passou por muitas coisas que eu também passei na minha vida. Problemas com bullying no colégio, muitas ansiedades que tinham a ver com escolha profissional e estabilidade empregatícia, uma caralhada de empregos furada em agências de publicidade, bullying e assédio moral nesses empregos, até finalmente entender que a melhor saída era trabalhar com freelancer. Tem páginas neste quadrinho, de conselhos da Cris, que são coisas que aconteceram comigo da mesma forma. Os cinquenta conselhos que os jovens não pediram, que Cris traz aqui nesta publicação, vem, mais ou menos, em uma página cada um, comemorando também os 50 anos da autora. O traço da Cris tem um quê de underground, mas também não tem. É uma narrativa muito expressiva, irônica, sarcástica, sardônica, que realmente os jovens – talvez não os dessa geração, mas os das anteriores – deveriam ter como leitura obrigatória num vestibular da vida.

A BELA CASA DO LAGO, VOLUME 1, DE JAMES TYNION IV E ALVARO MARTINEZ BUENO
Fazia tempo que não ficava tão vidrado em um quadrinho como com A Bela Casa do Lago. Já sabia que James Tynion IV era um escritor talentoso devido ao seu trabalho na DC Comics, e que era superior ao de outros roteiristas da editora. Aqui, sem tantas amarras editoriais, ele traz uma trama de terror envolvente, densa e que mistura também elementos de um suspense de Agatha Christie e de um terror cósmico de H. P. Lovecraft. Além disso, lida com temas como amizade e confiança, a iminência do fim do mundo, segredos e conspirações, com personagens bem construídos e diálogos que servem para o que devem servir, revelá-los. Não conhecia a arte de Álvaro Martínez Bueno e curti imensamente cada página, cada conceito visual que ele criou para essa história em quadrinhos e que não foram poucos. Fiquei muito envolvido com a narrativa e só larguei o encadernado quando realmente acabou o material que tinha em mãos (que é a primeira parte). Mal posso esperar para que a Panini Comics Brasil traga a segunda parte desta série para eu me deleitar lendo mais uma vez.

ALHO-PORÓ, DE BIANCA PINHEIRO
Brian Michael Bendis, roteirista estadunidense de comics de super-heróis gosta de se vangloriar de que seus diálogos são naturais, coloquiais, dentro da escola do teatrólogo David Mamet, e tem muita gente que compra essa conversa. Deve ser porque eles ainda não leram Alho-Poró, da sensacional Bianca Pinheiro. Esse trabalho sim, trabalha a coloquialidade da vida e dos diálogos que são incitados por uma simples e singela receita de uma quiche de alho-poró e acaba de uma forma nada coloquial, contrastando todo o exercício da normalidade banal que essa incrível quadrinista brasileira executa neste quadrinho despretensioso e explosivo. A arte de Bianca se conecta com a sua narrativa visual, dando as pausas e acelerando esses diálogos coloquiais em um ritmo que provocam os efeitos planejados para causar um determinado efeito no leitor, que não vou revelar qual é para não dar spoilers, só para atiçar sua curiosidade. Eu sei que demorei bastante para ler este quadrinho, mas antes tarde do que nunca e recomendo fortemente a leitura desta HQ cinco estrelas!

ALVO HUMANO, VOLUME 1, DE TOM KING E GREG SMALLWOOD
Esqueça Senhor Milagre, Estranhas Aventuras, Rorschach, e até mesmo o Visão. Para mim, o melhor trabalho de Tom King revitalizando personagens “esquecidos” para o selo Black Label da DC ou trabalhando para a Marvel, é este aqui, Alvo Humano. King usa o conceito de Alvo Humano, uma espécie de dublê com detetive suicida, para uma investigação mortal. Christopher Chance, o Alvo Humano, tem doze dias de vida para descobrir quem o envenenou, e as investigações dizem que o culpado foi um dos membros da Liga da Justiça Internacional, também conhecida como Liga Cômica. Um a um dos seus membros vão sendo analisados profundamente por Chance, enquanto vão passando os dias, ao lado de uma sedutora Gelo. Um dos grandes destaques dessa trama e que a diferencia das outras empreitadas de King é a arte fantástica e retrô de Greg Smallwood que nos remete a anúncios publicitários dos anos 1950 vindos da mente dos Mad Men. É simplesmente um deleite essa arte cheia de detalhes e que constroem uma narrativa tão intrigante e dinâmica. Aguardo ansioso pela segunda e última parte dessa história.

ANIQUILADOR, DE GRANT MORRISON E FRAZER IRVING
Muitos trabalhos de Grant Morrison trabalham com a metalinguagem e, geralmente, são esses trabalhos do autor escocês que têm um maior destaque em sua carreira, como Homem-Animal e Flex Mentallo. Aniquilador é outro ótimo trabalho dessa leva, mas que é menos comentado, talvez por não ter sido publicado pela DC Comics. Nele, um roteirista de Hollywood é diagnosticado com câncer no cérebro ao mesmo tempo que recebe a visita de sua própria criação, um criminoso interdimensional que busca asilo na Terra para entender sobre seu propósito e história pregressa que estão presos na mente do roteirista. A arte de Frazer Irving fica sensacional com as cenas do espaço interdimensional de onde vem o criminoso e ajuda o leitor a fazer o cruzamento entre a realidade da Terra e da space opera que Grant Morrison preparou para os leitores. Entre esses temas, temos o abuso do álcool e das drogas, do sexo e as relações tóxicas entre homens e mulheres sendo abordados também nesta história em quadrinhos. Uma ótima pedida para fãs de Morrison, mas que serve também muito bem aos leitores de primeira viagem.

ARKHAM CITY: A ORDEM DO MUNDO, DE DAN WATERS, DANI E NIKOLA CIZMESIJA
Assim como outras obras que tem o Asilo Arkham como pano de fundo ou como propulsor da trama de uma graphic novel ou minissérie, Arkham City: A Ordem do Mundo também lida com os binômios sanidade/loucura e realidade/imaginação. Mas mais que as outras obras sobre essa “casa de recuperação”, que em nenhum momento é mostrado pacientes em recuperação ou em tratamento, mas sendo achacados por super-heróis fascistas e policiais, Arkham City questiona a existência do Arkham e as formas como os pacientes são tratados. De leve, mas já é um avanço. A neurodivergência, ou a loucura sempre foram um tabu, mas aos poucos estão se tornando mais claras para a sociedade em geral. Mesmo que nos quadrinhos as pessoas continuem sendo maltratadas em manicômios, sanatórios e asilos, – nomes do século XIX para clínicas psiquiátricas. Na série, o Asilo Arkham foi destruído pelo Coringa e os seus reclusos, mortos ou fugidos. Cabe à doutora Joy e alguns policiais recolherem estes pacientes, antes que Azrael, o crente sem escrúpulos e empatia, mate todos impiedosamente. Somos apresentados ao Homem dos Dez Olhos, que é um personagem intrigante que cola as peças da trama com os demais fugitivos do Arkham e a Doutora Joy. Os roteiros são do ótimo Dan Waters, que desenvolveu a recente série de Lúcifer e os desenhos noir são de responsabilidade da estrela ascendente DaNi que faz um trabalho de chiaroscuro sensacional, comparável a Eduardo Risso. Além disso, a Panini incluiu um pequeno arco do Azrael neste volume, que serve de prelúdio para esta minissérie.

A ROSA MAIS VERMELHA DESABROCHA, DE LIV STROMQUIST
Lidar com o amor (ou o sexo) em tempos de capitalismo tardio é um desafio para todos nós que vivemos neste período. Um dos sinais dessa dificuldade é que as pessoas se apaixonam cada vez mais raramente – ou nunca se apaixonam – hoje em dia. Liv Strömquist, autora de outra fabulosa obra, A Origem do Mundo, traz em quadrinhos uma análise detalhada desse sintoma do capitalismo tardio, um tempo em que as pessoas querem mais acumular quantidades de parceiros e feitos sexuais do que aproveitar o momento com alguém que realmente tenha a ver com elas. Assim, a autora fala desse sintoma em que atualmente a paixão, quando e se acontece, tem a ver com pessoas que sejam mais parecidas conosco do que iguais a nós. Isso pode ser verificado belamente em relacionamentos gays em que os pares são quase gêmeos um do outro. Ela também fala como o patriarcado, a constituição da família, e as mudanças na sociedade provocadas pelo individualismo do capitalismo têm transformado as aspirações femininas num relacionamento em aspirações masculinas do século XIX, um bom exemplo é o comportamento das protagonistas da série de TV Sex and The City. Strömquist também discute, entre outras coisas, nosso medo da morte e nosso desencantamento com o mundo como partes de sentimentos que nos fazem querer evitar relacionamentos duradouros e estáveis, e buscar quantidade, risco e, ironicamente, pessoas que pensem exatamente como nós. Segundo ela, o amor deveria, através de uma pesquisa em autores clássicos, acontecer através de pessoas que nos completem e não com aquelas que não tenham nada a adicionar em nossas vidas, por agirem e pensarem da mesma forma que nós. Ou seja, o capitalismo tardio também estraga nossa definição do que é ou deve ser o amor (e o sexo).

BATMAN/SUPERMAN: CAVALEIROS DAS TREVAS DE AÇO, DE TOM TAYLOR, YASMINE PUTRI E BENGAL
Batman/Superman: Cavaleiros das Trevas de Aço poderia ser considerado por alguns como um 1602 da DC Comics, mas eu não acho. Também, por causa das intrigas palacianas e das reviravoltas impactantes, poderia ser pensado como uma espécie de Game of Thrones dos super-heróis, mas eu também não acho. Antes desses dois haviam as lendas arturianas e o Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, e acho que é nesses dois trabalhos que Tom Taylor, Yasmine Putri, Bengal e os outros envolvidos foram buscar inspiração. Batman/Superman: Cavaleiros das Trevas de Aço é uma história em quadrinhos envolvente, carismática, belissimamente desenhada, que rompe com diversos paradigmas canônicos da DC, deixando com que o leitor fique sem saber exatamente o que esperar, diferente de outras obras de “elseworlds” produzidas desde então. Esta primeira edição foi uma bela recompensa para os fãs do Universo DC Comics em geral. Espero que seu encerramento no segundo volume continue no mesmo nível, porque deste eu gostei demais!

COMO FAZER MANGÁ, VOLUME 1, DE RAONI MARQS
São muito legais quadrinhos que falam de quadrinhos, só que em formato de quadrinhos! Existe uma tradição nisso que vai de Eisner e McCloud nos comics a de Tezuka e Toriyama nos mangás. No Brasil isso é mais difícil, mas não impossível de acontecer. O quadrinista e animador Raoni Marqs que já publicou outras obras sobre como fazer histórias, agora atacou no formato mangá, publicado pela JBC, para ensinar a todo amador ou a todo iniciante de que forma se pode fazer um mangá. A abordagem dele é sensacional e o protagonista é um menino que quer se tornar o maior mangaka de sua geração. Maru, o principal personagem vai encontrar em seus colegas, que se aferram mais no roteiro ou na arte, possíveis parceiros ou rivais. Usando essa prerrogativa, Marqs vai enredando o leitor pelo fazer dos mangás, ou dos quadrinhos em geral. Mas dos mangás em específico. O resultado é muito aprendizado, tanto para quem é velho de guerra como eu, como para quem está no comecinho. Mas também é uma diversão tão completa como se estivéssemos lendo qualquer outro mangá sobre qualquer outro assunto.

CONEY ISLAND, DE GIANFRANCO MANFREDI, GIUSEPPE BARBATI, BRUNO RAMELLA E ANDREJ CVITAS
Mais um ótimo fumetti que a Editora 85 colocou à venda no Catarse. Trata-se de uma edição única de uma história policial em estilo noir que se passa na ilha de Coney Island, nos Estados Unidos da época da lei seca. O próprio chefão dos gângsteres, Al Capone, faz uma aparição na história em quadrinhos. Gianfranco Manfredi desenvolve uma trama policial e sobrenatural que deixa o leitor grudado na publicação só querendo largá-la quando chegar ao final da leitura. Comigo foi assim. Além da investigação de crimes envolvendo donzelas em perigo e gângsteres, Coney Island também traz uma subtrama que envolve atrações do parque de diversões que ficava na ilha. Mais especificamente o show de um ilusionista, mas que tem poderes realmente parapsicológicos de previsão do futuro. Os destinos do detetive protagonista, do ilusionista, o motoqueiro do globo da morte, de Al Capone, e da mocinha em perigo da vez irão se misturar e, para evitar um futuro sombrio, eles terão de cometer atos impensados. E pra completar temos uma pitada de Segunda Guerra Mundial. Uma HQ sensacional que recomendo muitíssimo.

FIM DE TARDE, VOLUME 1, DE CHICO LACERDA
Fim de Tarde é uma autobiografia queer em quadrinhos desenvolvida pelo pernambucano Chico Lacerda, que também é cineasta e professor universitário. Dentro das peculiaridades da vida de Chico, Fim de Tarde é um retrato das primeiras noções de homossexualidade num contexto em que a sexualidade do brasileiro se desenvolvia ainda sem a presença massiva da pornografia ubíqua na internet. Para promover seus desejos incipientes, mas potentes, o jovem Chico recorria a produções softcore heterossexuais, a embalagens de cueca e outros artifícios que rendiam um carregamento de arquivos para a pasta cerebral “Material de Punheta”. Muitos gays, como eu, precisaram recorrer à esse tipo de memória, durante um tempo em que nosso acesso a materiais visuais, quaisquer que fossem, que atiçassem nosso desejo, precisavam ser vistos de soslaio, de butuca, por causa da grande repressão interna e externa que sentíamos. Estou bastante empolgado para ler a continuação dessa HQ que traz um traço agradável com tons de cinza oníricos, que nos remetem às recordações e lembranças, por mais sexuais que elas tenham sido. Uma ótima HQ!

GÊNERO QUEER, DE MAIA KOBABE
Gênero Queer, escrito, desenhado e produzido por Maia Kobabe é um quadrinho que foi ao mesmo tempo muito celebrado pela crítica e muito perseguido pelos conservadores, que fizeram de tudo para banir essa graphic novel de bibliotecas ao redor dos Estados Unidos. A despeito dos críticos e da crítica, Gênero Queer é uma obra importantíssima de visibilidade da população queer. Essa palavra tem aqui a acepção de pessoas que desviam da sexualidade tida como normativa. Maia Kobabe, em sua autobiografia em quadrinhos, se descobre ao mesmo tempo uma pessoa não-binária e também assexual, duas das letras do LGBTQIAPN+ mais invisibilizadas. Paralelamente, ela se revela uma pessoa doce e inocente, que, num complexo de Poliana, é uma vítima da mídia, da cultura e da sociedade que não a compreende. Aqui vejo alguns problemas nesse quadrinho. Contudo, por trazer essa discussão, com uma trama reveladora, aberta, escancarada sobre sua sexualidade e identidade de gênero, essa graphic novel com belos desenhos e lindamente diagramada deve ser celebrada. Trazer luz sobre assuntos complicados como gênero e sexualidade também deve ser uma das missões dos quadrinhos, que já vêm fazendo isso de uma forma tão incrível e na maioria das vezes abraçadas pelos leitores, pela crítica e por muita gente de fora da bolha dos quadrinhos.

GOTHAM CITY: ANO UM, DE TOM KING E PHIL HESTER
Apesar de Gotham City: Ano Um ser escrita por Tom King, escritor de quadrinhos badalado dos últimos anos, não vi nenhuma comoção a respeito da minissérie por aí. Mas gostei da premissa: mostrar como o crime e a corrupção começaram na cidade, duas gerações antes do surgimento do Batman. A história é focada em Slam Bradley, detetive particular criado pelos mesmos inventores do Superman. O que me encantou mesmo nessa minissérie foi a tentativa de emular as narrativas noir dos anos 1930 de autores como Mickey Spillane e Raymond Chandler, com um protagonista imponente como Bradley e personagens sem escrúpulos e nem remorsos como os Wayne daquela época. São todos ingredientes que um belo romance noir pede, além de uma polícia não confiável e algumas pitadas de femmes fatales agindo dentro da trama. Mas temos também os plot twists interessantes de histórias clássicas do noir como Chinatown e L. A. Confidencial. Esse quadrinho me fez ficar grudado nele até eu entender todos os mistérios que ele estabelece e desbarata até a última página, mas também acaba deixando alguns na incumbência do leitor.

HERA VENENOSA, VOLUME 1, DE G. WILLOW WILSON, BRIAN LEVEL E MARCIO TAKARA
G. Willow Wilson é uma baita escritora de quadrinhos. É muito difícil achar algum quadrinho dela em que não se entregue 100% em textos densos e pesquisa extensa. Neste quadrinho, Wilson embarca na personalidade de Pamela Isley, a Hera Venenosa, como, eu acredito, que ninguém tenha feito. Neste quadrinho Hera está com mais um plano infalível para destruir a humanidade, que infecta o mundo vegetal e atrapalha seu desenvolvimento. Enquanto segue com seu plano, Pamela se encontra com seres humanos que corroboram sua vontade de exterminá-los e outros, que a encantam e quase a fazem desistir da ideia. É muito interessante a justificativa de Hera para que não seja uma pessoa vegetariana, fruto da pesquisa de Wilson, e apenas uma amostra de sua genialidade na escrita. Também os desenhos do brasileiro Marcio Takara estão melhores do que nunca aliados com as cores expressivas de Alif Prianto. Não é por acaso que esse volume de Hera Venenosa tem ganhado destaque tão grande que passou de uma minissérie a um título regular da DC Comics e que vale muito a sua conferida!

NA SALA DOS ESPELHOS, DE LIV STROMQUIST
Os quadrinhos em estilo “documentário/acadêmico” produzidos por gente como Liv Strömquist e Box Brown têm me conquistado muito nos últimos tempos. São quadrinhos que não contém desenhos muito rebuscados ou extremamente detalhados, às vezes os quadros têm mais texto do que as ilustrações em si. Mas eles contém uma ironia que nos faz sorrir e até gargalhar sobre o assunto tematizado por esses autores e autoras. Na Sala dos Espelhos trata sobre nossa incessante busca pela beleza, como algo subjetivo e que, provavelmente, nunca alcançaremos. Liv se utiliza de diferentes teóricos, notícias e fatos históricos para contar como somos dependentes desse inalcançável conceito de beleza. Esse também é o primeiro álbum de Liv Strömquist que sai colorido no Brasil. Talvez as cores não fossem tão necessárias em determinadas partes do álbum, mas levando em conta que ele fala de opulência, ostentação e diversidade de opiniões, as cores muitas vezes amarram bem o tema proposto. Mais um ótimo livro de Liv Strömquist e que venham muitos mais!

NORMAL, DE HELENA CUNHA
Quando a Helena me contou a premissa desta HQ na Bienal de Curitiba, onde fomos vizinhos de mesa, eu fiquei muito interessado. Ela trata sobre uma menina que cansou de esperar a Igreja trazer a cura para os sentimentos homoafetivos que sentia e acaba buscando um pacto com o Inferno para conseguir isso. Ao mesmo tempo, no Inferno, uma estagiária (sempre eles) e o pior funcionário do local, acabam precisando trocar a alma de um genocida canibal por uma alma pura, que por acaso é a menina em questão. Temos então algumas confusões envolvendo as duas tramas, numa vibe meio comédia shakespeariana, meio A Profecia, junto com os desenhos da Helena que me lembraram um pouquinho o Chris Ware. Este foi o primeiro quadrinho da Helena que li e gostei muito, em seguida li Boa Sorte, que também é ótimo. Foi muito bom ter tido essa oportunidade de trocar ideias com ela e também trocar quadrinhos, porque valeu muito a pena a leitura de Normal, e agora vou professar a palavra do demônio, ops, do quadrinho por aí para quem quiser ouvir!

NOS OLHOS DE QUEM VÊ, DE HELÔ D’ANGELO
Em 2022, Helô D’Angelo lançou o quadrinho “Nos Olhos de Quem Vê”, pela editora HarperCollins Brasil. O quadrinho, que saiu em formato livro e capa dura, é um misto de reportagem e autobiografia falando sobre as dificuldades que Helô passou ao tentar se encaixar nos padrões de beleza exigidos principalmente para as mulheres que vivem no mundo contemporâneo. Através de capítulos muito bem construídos sobre diversos assuntos que tangem ao corpo feminino, Helô vai desmistificando comportamentos sociais que exigem uma padronização do corpo da mulher. Dessa forma, Helô demonstra neste quadrinho que beleza é sentir-se bem consigo mesmo e que os defeitos estão, como diz o título, “nos olhos de quem vê”. De capítulo em capítulo, cada um dedicado a um tema da beleza corporal, Helô vai investindo em contar sua história, lidando com o padrão de beleza exigido para as mulheres. De maneira lúdica e divertida, os quadrinhos de Nos Olhos de Quem Vê não são contados da maneira tradicional, mas também se utilizando de efeitos infografados, por isso Helô demonstra na HQ também toda sua verve jornalística. Nos Olhos de Quem Vê, de Helô D’ Angelo, revela a hipocrisia da sociedade capitalista contemporânea, através de um relato pessoal e intimista. Fala sobre a busca de agradar um punhado de pessoas que veem defeito em tudo que fazemos e somos, apenas para se manterem em dia com as manipulações que o mercado nos impõe. O trabalho de Helô corrobora a teoria do biopoder de Michel Foucault, em que os corpos são manipulados e trabalhados para seguir os interesses dos mais poderosos. Helô traz uma leitura crítica sobre o que estamos fazendo com nossos corpos no momento atual e como vivermos mais tranquilos com aquilo que a sociedade julga como imperfeições corporais. Afinal, tanto a beleza como aquilo que não é belo, vem exclusivamente dos olhos de quem vê.

OBSESSÃO PELO PODER, DE ARNOLD DRAKE, MATT BAKER, LESLIE WALLER E RAY ORSIN
Obsessão Pelo Poder é um quadrinho que foi trazido ao Brasil pela Editora Skript com a tarja de que teria sido a primeira graphic novel da história. Embora nem todos os historiadores de quadrinhos concordem com isso e a decisão entre o que foi o primeiro o que nos quadrinhos sempre foi turva, essa é uma ótima HQ. O leitor é profundamente envolvido na suposta inocência de um jornalista embriagado de amor por uma vil viúva e que ao mesmo tempo se apaixona pela enteada dela. Uma mistura de quadrinhos de romance com crime, duas vertentes muito populares na época desta publicação, Obsessão pelo Poder não fica devendo em nada para as ótimas narrativas modernas da Bonelli e ainda guarda esse gostinho retrô. O trabalho envolve dois prolíficos criadores da indústria estadunidense de quadrinhos: Arnold Drake, criador da Patrulha do Destino e Matt Baker, quem emprestou seu nome e trabalho a diversos quadrinhos e morreu no ostracismo, muito por ser um desenhista negro. Vale destacar o ótimo trabalho de adaptação tanto de texto como de arte feito pela editora e felicitar a edição brasileira desta obra, a despeito de ter sido a primeira graphic novel ou não.

O EFEITO HE-MAN, DE BOX BROWN
Talvez O Efeito He-Man seja o melhor quadrinho de Box Brown que tenha lido até então. Claro, muito tem a ver com o fato de que ele lida com um fenômeno que perpassou a minha infância: as empresas investindo forte, num capitalismo tubarônico, para atrair a atenção das crianças para um produto conjugado entre brinquedos, desenhos animados e histórias em quadrinhos. Para explicar tudo isso, Box Brown vai longe, desde estudos psicológicos sobre comportamento de dependência, a estudos sobre a nostalgia e a história mundial a partir da Segunda Guerra Mundial, bem como a origem da publicidade e do merchandising. Tudo isso para evidenciar como as empresas nos manipulam e nos tornam dependentes de seus produtos, sem se importar com escrúpulos ou com as consequências de um consumo desproporcional. Brown também demonstra como essas empresas se viraram quando legislações mais humanas começaram a apertar o cerco contra elas, como as sindicalizações e os direitos de copyright. O Efeito He-Man não é só um ótimo quadrinho, mas uma leitura necessária para toda essa geração que foi manipulada durante sua infância.

SOMETHING IS KILLING THE CHILDREN, VOLUME 1, DE JAMES TYNION IV E WERTHER DELL’EDERA
Considero James Tynion IV um dos grandes nomes dos quadrinhos estadunidenses atuais. Acredito que não deixei de gostar de nenhum dos trabalhos em que ele desenvolveu os roteiros sozinho. Ele é muito bom especialmente em tramas de horror. E Something is Killing The Children definitivamente é uma trama bastante gore. Trata-se de monstros dilacerando e devorando criancinhas de uma cidade do interior dos EUA. No meio disso tudo temos um garoto com estresse pós-traumático e síndrome do sobrevivente que todos acusam de ter cometido os crimes e uma loira esquisitona que promete pra ele que vai dar cabo de todos os monstros que afligem a cidade. SIKTC é outra daquelas narrativas que a gente só quer desgrudar quando souber tudo sobre ela. Acontece que dentro dessa história não tem só investigação de assassinatos. Tem também sociedades secretas e bichinhos de pelúcia sinistros, tem muitos e muitos segredos que prometem ser revelados nas edições seguintes. A Devir trouxe as 15 edições desse arco num encadernado de quase 400 páginas em capa cartão. Ponto para a Devir. Contudo, a forma como o layout da HQ é desenvolvido, com páginas simples e duplas muito semelhantes, pode confundir o leitor. Isso porque o espaço que fica onde as páginas são coladas dificulta o discernimento do layout das páginas. Várias vezes me peguei lendo como página simples uma página dupla e vice-versa. Fora esse problema que deve ocorrer em todas as complicações desse tipo da HQ, SIKTC é sensacional e vale o seu tempo e dinheiro. Como um empurrão adicional para lê-la, vale dizer que em breve vai virar série de streaming da Netflix pelos mesmos produtores de DARK. Enquanto isso a HQ segue sendo publicada lá fora. Não bobeia e corre atrás!


Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges
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Adorei a lista, já separei alguns títulos para ler 😉
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