Editora gaúcha O Grifo resgata tradição do gótico e do horror na literatura nacional nas publicações recentes ‘Missal para o Diabo’, de Cruz e Sousa, e ‘Sertão’, de Coelho Neto
Edição: Vitor Diel com texto da assessoria
Arte: Giovani Urio sobre reprodução
Frequentemente, quando comenta-se sobre o gótico e o horror como gêneros literários, vêm à mente obras inglesas ou americanas de uma época distante e que chegam até o público brasileiro por meio de infinitos produtos de entretenimento enlatado. No senso comum, é como se esses gêneros em nada tivessem a ver com a cultura ou a realidade do nosso País. Entretanto, editoras e pesquisadores têm se esforçado nos últimos anos para demonstrar, através de livros e trabalhos acadêmicos, o quanto esses temas macabros, fantásticos e assustadores sempre fizeram parte da nossa tradição literária. Publicações recentes, como as coletâneas Tênebra (Fósforo, 2022), organizada por Júlio França e Oscar Nestarez, e Medo Imortal (DarkSide Books, 2019), apresentaram ao público uma gama de autores e histórias há muito esquecidas e que escancaram a forte ligação da nossa literatura com gêneros literários sombrios.
Influenciados pelos romances góticos do hemisfério Norte — que foram muito populares no Brasil no final do século XIX —, mas também pelo folclore nacional, autores como Machado de Assis, João do Rio, Júlia Lopes de Almeida, José de Alencar, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa e até Clarice Lispector, Mário de Andrade e Lygia Fagundes Telles exploraram o insólito em várias de suas narrativas, abordando cenas e personagens que vão desde fantasmas e esqueletos até alienígenas e pactos demoníacos.
Essa herança reverbera até hoje, em autores contemporâneos que têm se destacado no gênero, como Cristhiano Aguiar, Verena Cavalcante, Raphael Montes, Irka Barrios, Dia Nobre e Ana Paula Maia. Recentemente, a morte de Rubens F. Lucchetti, ícone do horror nacional, trouxe à tona o quanto o gênero carece de mais atenção do grande público leitor: afinal, Lucchetti foi pioneiro no país, escreveu mais de 1.500 livros, já foi considerado o “pai da pulp fiction brasileira” e roteirizou diversos filmes de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Mesmo assim, poucas pessoas fora do círculo de fãs do gênero conheciam sua importante herança cultural.

Com o objetivo de tirar das sombras os autores e obras apagadas no passado pela preponderância das correntes realista e regionalista, a editora O Grifo tem se dedicado a esse urgente resgate, por meio da sua coleção Clássicos Ocultos, reeditando obras há tempos fora de catálogo. A primeira publicação foi Missal para o Diabo: contos e poemas assombrosos (2023), que reuniu a produção insólita de Cruz e Sousa, poeta negro e fundador da corrente Simbolista no país, fortemente inspirado pelo satanismo baudelairiano. No mesmo ano, em parceria com a editora Ex Machina, lançou Horto de Mágoas, de Gonzaga Duque, importante autor do movimento decadentista, também ignorado pela tradição literária brasileira. Publicada postumamente em 1915, a obra reúne todos os contos do autor e estava fora de catálogo há décadas, sendo essa apenas a sua terceira edição.
“Temos presenciado, nos últimos anos, um grande interesse dos leitores de todo o país por livros de terror escritos por autoras e autores brasileiros. Existem diferentes motivos e teorias sobre isso, mas podemos destacar o boom do terror latino-americano escrito por mulheres e o recente período sombrio na política, acrescido de uma pandemia global”, explica Ismael Chaves, organizador da coleção Clássicos Ocultos, para quem decisões editoriais como a da O Grifo contemplam demandas subjetivas do público leitor contemporâneo. “A arte serve como válvula de escape para os temores, é como uma catarse que exorciza os nossos demônios interiores”, comenta.
Já Daniel Gruber, editor da O Grifo, destaca que subgêneros literários como o horror, o insólito, o gótico, a distopia e o true crime deixaram de ser uma literatura de nicho: “Os próprios livreiros têm refletido esse crescimento na sua busca por abastecer as livrarias com novos títulos. Da mesma forma, o crescimento no interesse do gênero se reflete no resgate da tradição literária sombria até então pouco valorizada”, reflete o editor.
Sertão assombrado
O mais recente projeto da editora é Sertão, do maranhense Maximiliano Coelho Neto, uma das mais importantes obras da literatura insólita e fantástica brasileira, publicada originalmente em 1896, mas infelizmente caída no ostracismo e há décadas fora de catálogo.
Nesta coletânea, Coelho Neto mesclou a poética regionalista, o folclore nordestino e a tradição gótica para assombrar os leitores com sete narrativas de horror. Diferentemente dos castelos labirínticos dos romances ingleses, o autor situou seus terrores e fantasmas nas matas, nas taperas sertanejas, nos casarões das fazendas abandonadas e à beira de estradas e pântanos, onde mortos são enterrados. Nesses cenários assombrosos e tipicamente brasileiros, os personagens, em sua maioria negros, caboclos e pobres, encarnam o verdadeiro horror da herança colonial. Numa cultura rica em misticismo e religiosidades, mas assombrada também pelo sofrimento das secas, da miséria, da fome, doenças e morte, Coelho Neto já foi considerado o Edgar Allan Poe brasileiro.
A nova edição, revisada conforme o Novo Acordo Ortográfico e incluindo ensaios dos pesquisadores Alexander Meireles da Silva e Mauricio Cesar Menon, está atualmente em campanha de financiamento coletivo na plataforma Catarse até o dia 26 de maio.
O projeto atingiu sua meta de arrecadação na primeira semana e agora apresenta uma lista de melhorias para as metas extras. Além do livro, os apoiadores do projeto podem garantir marcadores, postais, ecobags e camisetas exclusivas. A edição também inclui uma apresentação do editor Ismael Chaves e a primeira versão do conto Praga, de 1890, inédita em livro.
Sobre o autor
Henrique Maximiliano Coelho Neto nasceu em Caxias, no Maranhão, em 20 de fevereiro de 1864, e faleceu no Rio de Janeiro em 1934. Foi um cronista, contista, folclorista, romancista, crítico, teatrólogo, político e professor. Foi considerado o Príncipe dos Prosadores Brasileiros, numa votação realizada em 1928 pela revista O Malho. Membro-fundador da Academia Brasileira de Letras, escreveu mais de 120 livros, entre romances, contos, crônicas e teatro. Mais famoso que seu contemporâneo Machado de Assis, foi um dos poucos escritores da época a ter sua obra traduzida para diversos países. Em 1915, foi lançado em Berlim, na Alemanha, Der tote Kollektor: Novellen aus der Welt des Grauens (ou, “O colecionador de mortos: histórias curtas do mundo do horror”), uma coletânea com alguns dos seus contos macabros.
Coelho Neto participou de movimentos abolicionistas e foi um dos primeiros autores a manifestar preocupações ecológicas, escrevendo contra o desmatamento e as queimadas na Amazônia.
Apesar de ser o autor mais lido de sua época, foi atacado pelo Modernismo no início do século XX, que o considerava “ultrapassado” e, portanto, uma ameaça para a renovação da Literatura Brasileira. Sendo pouco lido desde então, e caindo em verdadeiro ostracismo intelectual e literário, a maior parte de sua vastíssima obra se encontra esgotada há décadas. A maioria de seus livros estavam inacessíveis. Por conta disso, seu nome, bem como sua história, estão ausentes da maioria dos livros didáticos e das referências escolares e acadêmicas.

Missal para o Diabo: contos e poemas asso
Cruz e Sousa (org. Ismael Chaves)
144 p.
O Grifo Editora
R$ 74,90
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Sertão
Coelho Neto (org. Ismael Chaves)
O Grifo Editora
Em campanha pelo Catarse até 26 de maio
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