Guilherme Smee: Terra inundada, quadrinhos arrasados

“Mais de vinte quadrinistas e ilustradores gaúchos tiveram de deixar suas residências e se abrigarem em lares temporários”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução

Existe uma saga das histórias do Batman em que Gotham City sofre um terremoto de grandes dimensões, com isso, a cidade fica sem luz, sem água e sem comunicação terrestre e de telecomunicações com o resto do país. Para piorar, o próprio governo dos Estados Unidos isola Gotham e não manda recursos para a cidade. Gotham City se torna uma verdadeira Terra de Ninguém, em que a cidade é dividida em áreas dominadas por gangues e policiais corruptos porque se encontra em um estado pior que o de calamidade pública e ninguém quer ou pode fazer algo a respeito disso. A não ser Bruce Wayne, o Batman e seus aliados.

Porto Alegre e muitas outras cidades do Rio Grande do Sul viveram quase um mês de Terra de Ninguém, assoladas por um desastre climático nunca antes visto na região. Ele foi intensificado com o descaso das autoridades estaduais e municipais, com seu despreparo e falta de atenção para a manutenção de dispositivos que poderiam ter evitado boa parte da catástrofe. Além de políticas voltadas para a gentrificação da cidade e para minar o ecossistema gaúcho. Tudo isso causou extrema consternação popular, perdas de vidas, perda de lares, perda de dignidade para o povo gaúcho. A ajuda veio de fora, de outros estados e do governo federal, além da própria iniciativa dos gaúchos, da iniciativa privada e principalmente dos voluntários, grandes heróis da tragédia. O poder público municipal e estadual se viram de mãos atadas, encurralados por consequências de suas próprias ações predatórias. Porto Alegre se tornou uma Terra de Ninguém, como Gotham, com uma única saída da cidade disponível para seus cidadãos, e com a consolidação de um esforço de guerra, incluindo uma espécie de “corredor humanitário” para que insumos entrassem na cidade. Os supermercados de Porto Alegre viram uma disputa por víveres que sumiram de suas prateleiras.

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Estoques arrasados

Mas não foi somente os supermercados que sofreram revezes econômicos, toda a cadeia produtiva do estado foi afetada. E isso inclui também a indústria da cultura e da economia criativa, tão ignorada nos últimos governos estaduais. Tratada como artigo de segunda mão, em uma região que já foi centro de excelência e de referência no país em termos de artes, educação e cultura. Neste texto quero especificar um pouco como o desastres das chuvas no estado atingiu o setor da economia criativa dos quadrinhos que, vale destacar, não possui nenhum incentivo estadual ou municipal específico de produção e de circulação, tendo sido inclusive retirada sua categoria do prêmio Minuano, promovido pelo Instituto Estadual do Livro. Também fazem mais de oito anos que o governo municipal não promove mais o Salão de Desenho de Imprensa, atividade ligada aos quadrinhos. Em comparação, vemos diversas iniciativas em outros estados que disponibilizam formas de promover a nona arte.

Começando pelas editoras que trabalham com quadrinhos, muitas delas tiveram seus estoques danificados com a força da enxurrada. Esses estoques se encontravam nos bairros Humaitá e Navegantes, na zona norte de Porto Alegre, lugares afetados pela falta de manutenção de comportas do Guaíba. Prejuízos que poderiam ter sido mitigados. É o caso da Libretos, que edita quadrinhos de nomes importantes como Edgar Vasques, Santiago e Christian David, que perdeu mais de doze mil exemplares do seu estoque. Clô Barcellos, uma das sócias da Libretos, acredita que nesse momento o poder público deveria agir lançando um edital de reimpressão destes livros, uma ajuda que não somente faria com que o mercado livreiro tivesse um novo fôlego, mas também as gráficas, que foram afetadas poderia ter um respiro. Ideograf, Odisseia, ANS, são algumas gráficas gaúchas que viram seus maquinários ficarem debaixo d’água. Os funcionários da Odisseia precisaram ser resgatados de barco em função das cheias, mesmo com sacos de areia barrando a entrada das correntes fluviais.

Outra editora gaúcha que viu seu estoque de Porto Alegre ser devastado foi a AVEC, que perdeu quase todos os livros e quadrinhos que tinha guardado na cidade. Agora, a editora vai se dedicar ao seu estoque em São Paulo e à impressão sob demanda de seus livros, o que, infelizmente, não pode ser feito com quadrinhos, devido a sua complexidade de produção e de custos. A editora planeja diminuir o investimento em produções de quadrinhos no futuro devido a essa condição.

A editora Hipotética perdeu entre 50% e 60% de seu estoque, também localizado na zona Norte de Porto Alegre. Foi graças aos pallets que o estrago não foi maior. Com uma ida ao Festival Internacional de Quadrinhos agendada para semanas após o desastre, os editores precisaram enfrentar uma jornada desafiadora para estarem presentes em Belo Horizonte, local de realização do evento. Em seguida, desenvolveram um selo que figura nos seus livros “sobreviventes do desastre”.

Fotos: Hipotética/Divulgação

Também a Brasa Editora, convidada para o Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte, não pôde se fazer presente no evento. Sua participação foi remota na rodada de negócios desenvolvida pelo SEBRAE. Lobo e Samanzuca, sócios da Brasa, tiveram o apartamento em que moram e a sede logística da empresa, no Menino Deus, invadido pela lama, o que prejudicou os servidores que guardam os arquivos de lançamentos programados para breve. Todo o capital de giro da editora estava dedicado ao FIQ. Lobo e Samanta saíram urgentemente de casa com a roupa do corpo e os gatos, devido ao descaso da prefeitura em avisar sobre o desligamento das bombas de drenagem no Menino Deus.

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Por fim, a L&PM, uma das maiores editoras do Rio Grande do Sul e com muitos quadrinhos em seu catálogo, completa 50 anos de existência esse ano com a comemoração do aniversário de publicação da primeira revista do personagem Rango, de Edgar Vasques. Mas a comemoração foi fraca: primeiro a editora anunciou que seu estoque com mais de 900 mil livros foi afetado, depois surgiu a notícia de que essa quantidade era menor do que o estipulado. A sede da editora, localizada na Comendador Coruja, no bairro Floresta, também sofreu com o desastre e terá de ser realocada devido à vulnerabilidade do local e das perdas sofridas.

Trabalhos dilacerados

Mas a calamidade não afetou somente as pessoas jurídicas envolvidas com quadrinhos, muitos artistas foram desalojados de suas residências. Conforme pude apurar, mais de vinte quadrinistas e ilustradores gaúchos tiveram de deixar suas residências e se abrigarem em lares temporários. Mais de uma dúzia deles tiveram perdas materiais graves com o desastre. A comunidade dos quadrinhos se uniu em prol dessas pessoas e elaborou uma lista com os PIX dos atingidos, divulgada fortemente pela Hipotética e pela ASPAS.

Uma das figuras que mais luta pela cena de quadrinhos de Porto Alegre e região, o desenhista internacional, que trabalhou para a Marvel e DC Comics, Daniel HDR teve assolada a escola de quadrinhos que fundou, o Dínamo Estúdio. O artista perdeu seus materiais de trabalho, seu acervo de originais, a gibiteca da escola, a produção de quadrinhos independentes e toda a infraestrutura do local, localizado no bairro Santa Maria Goretti. Quando entrevistado para esta coluna, Daniel declarou que a prefeitura ainda não tinha recolhido os destroços resultantes do desastre na sua rua, o que impedia a reconstrução do espaço. O Dínamo Estúdio vem sendo refeito graças ao apoio dos amigos, dos fãs e de uma campanha organizada pela Chiaroscuro Studios, agência de ilustração que Daniel faz parte, que arrecadou fundos através de vendas de originais dos colegas representados pela agência.

Rafael Fritzen, fenômeno da internet, que tem mais de 650 mil seguidores no seu perfil Ângulo de Vista, no Instagram, e que publicou a HQ Charlie, o Jovem Adulto, pela Harper Collins, também foi um dos afetados pelas cheias. Teve de deixar a casa em São Leopoldo, junto com a esposa, Marisol, e a filha recém-nascida, Aurora, para buscar abrigo da água que invadiu sua residência. Rafael também perdeu seu estoque de quadrinhos que levava para os eventos do gênero ao redor do país.

O quadrinista de Alvorada, Pablito Aguiar transformou em história em quadrinhos, a pedido da plataforma de jornalismo independente Sumaúma, a luta de outra quadrinista e roteirista Talita Grass, ao encontrar seu apartamento no Menino Deus devastado pela lama e pela água. Talita é autora de Cordélia, ao lado da ilustradora Ana Mei, e foi publicada pela Conrad Editora, que dedicou o lucro das vendas da HQ para Talita, em uma campanha na Internet. São muitas as histórias dos quadrinistas que foram afetados pelo assomo das águas no Rio Grande do Sul, todas elas trágicas e devastadoras, todas elas trouxeram muita comoção e ajuda do público dos quadrinhos que ajudaram como puderam os artistas.

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Esforço para ir ao FIQ e à PocCon

Entre os dias 21 e 26 de maio de 2024 ocorreu o FIQ, Festival Internacional de Quadrinhos em Belo Horizonte. Uma de suas convidadas e homenageadas era Ana Luiza Koehler, quadrinista porto-alegrense que desenvolveu trabalhos sobre construções símbolo da cidade, como as obras Beco do Rosário e Viaduto. Ana sentiu-se impossibilitada de participar do evento e sua participação foi remota, através de videoconferência.

Outros quadrinistas gaúchos, porém, embarcaram na desventura de ir até Belo Horizonte, mesmo com o aeroporto Salgado Filho inundado. Alguns, como este que vos escreve, pegaram ônibus da rodoviária improvisada no terminal Antonio de Carvalho rumo a Osório, para, depois de duas horas de espera na rodoviária, pegar outro ônibus em direção a Caxias do Sul. O voo foi cancelado e transferido para outro dia, rumo a São Paulo e depois a Belo Horizonte. Estavam presentes no FIQ os quadrinistas gaúchos Cris Camargo, Gustavo Borges, Guilherme Smee, Renato Britto, Thiago Krening, Dieferson Trindade, além de representantes das editoras Hipotética e Brasa. Ao final do evento, um dos organizadores do FIQ, Afonso Andrade, celebrou e puxou uma salva de palmas para todos os quadrinistas gaúchos que conseguiram chegar em Belo Horizonte e participar do evento. O esforço dos artistas gaúchos para participar dos eventos de quadrinhos fora do estado foi noticiado pelo Jornal do Comércio.

No final de semana seguinte, nos dias 31 de maio e 1º de junho, ocorreu a PocCon em São Paulo, feira de quadrinhos e artes gráficas LGBTQIA+, com a participação dos quadrinistas gaúchos Adri A., Guilherme Smee e Christian Gonzatti. Mas este que vos escreve teve um surto de Influenza A dois dias antes do evento, que o levou a ficar de cama, dois desmaios e uma visita ao hospital. Este surto de Influenza A afetou muitos outros quadrinistas presentes no FIQ, que também foi marcado por protestos e tentativa de censura de uma vereadora da extrema direita de Belo Horizonte.

Esperança em meio ao caos

Enquanto o poder público não toma iniciativas para a recuperação do cenário cultural e em especial dos quadrinhos do Rio Grande do Sul, outras iniciativas privadas estão sendo desenvolvidas em Porto Alegre e no restante do Estado que envolvem os quadrinhos.

Foi o caso da Feira do Livro Reconstrói RS, executada pelo Instituto Ling tendo como sede a própria instituição. Ela ocorreu no final de semana de 14 a 16 de junho de 2024. A Feira abriu espaço para os quadrinhos, trazendo estandes como os da AQUARIOS (Associação de Quadrinistas do Rio Grande do Sul), das editoras Hipotética e Brasa e dos quadrinistas Grazi Fonseca, Samanta Flôor e Pedro Leite. A iniciativa do Instituto Ling teve uma adesão do público que surpreendeu organizadores e expositores, com mais de 10 mil pessoas nos três dias de evento, que resultou num aporte de mais de R$ 300 mil para os participantes e mais de três mil livros doados.

Também em Taquara, sede da Tai Editora, iniciativas estão sendo feitas para ajudar a ONG Vida Breve, que promove a inclusão cultural e letramento de crianças e jovens na região do Vale do Paranhana. A Tai Editora também lançou uma campanha  de financiamento coletivo para ajudar o Projeto LI – Leitura Integral. “O objetivo da campanha é angariar fundos para a realização de oficinas que promovem o incentivo à leitura e à escrita, assim como a aquisição de materiais e equipamentos perdidos na enchente, e criação de uma biblioteca na sede da ONG”, conta Taína Lauck, sócia da Tai.

Por fim, mas não menos importante, para celebrar a cultura dos quadrinhos, ocorre no dia 21 de junho, a partir das 18h, a inauguração da loja da Brasa, na Rua José do Patrocínio, 611, na Cidade Baixa, um dos bairros de Porto Alegre afetados pela inundação. A loja trará, além do catálogo da Brasa Editora, outros quadrinhos independentes gaúchos e de outros estados, colaborando assim no circuito e no giro da economia criativa dos quadrinhos no Rio Grande do Sul e no Brasil. Longa vida a iniciativas que dão esperança em continuar fazendo quadrinhos no Rio Grande do Sul, mesmo com a marginalização de anos desta mídia pelas iniciativas públicas.

Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges

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