Mayara Floss: Enchentes, seca, nuvens de fumaça e chuva preta — como semear outros mundos possíveis?

“Além de ainda embalarmos livros em plásticos, embalamos o que comemos, o que vestimos, jogando micro e nanopartículas derivadas do petróleo no ambiente”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio

Escrevi uma distopia para, por meio de uma visão de futuro, pensarmos o presente, como explica Marilena Chauí. Porém, ao longo das últimas semanas recebi muitas mensagens sobre o livro Mundo Impossível, que “nasceu” (ao menos na gráfica, mas não menos simbólico) durante as enchentes de maio no Rio Grande do Sul. Essa série de histórias de ficção na cumbuca parece que foi superada pelos bancos de areia nos principais rios do norte do país, ou pela água que ultrapassou o teto de todo Rio Grande do Sul.

Parece que era necessário já um novo livro, tanto eu pensei quanto recebi diversas mensagens com essa reflexão. A forma como habitamos o planeta e nos organizarmos está provocando grandes mudanças na natureza biofísica da Terra, transpassando vários limites planetários, entre eles a poluição do ar, do solo e da água; um aumento no carbono atmosférico, gases de efeito estufa, mudanças climáticas, perda massiva de biodiversidade, mudanças na produção de alimentos e uso da terra e o esgotamento dos recursos naturais. Falo isso de um lugar que parece fadado ao fracasso nos tempos atuais da ciência — pesquiso mudanças climáticas e seus impactos na saúde humana, escrevi esta fabulação para provocar mudanças.

Estamos vivendo tempos em que os microplásticos são encontrados nas placentas, no ar que respiramos, em nossos corpos humanos e não humanos. Além de ainda embalarmos livros em plásticos, embalamos o que comemos, o que vestimos, jogando micro e nanopartículas derivadas do petróleo no ambiente e vidas. Nas últimas semanas de sol vermelho e nuvens de queimadas navegando em rios de fumaça, pediram-me para escrever um novo livro pois esse que seria impossível já é realidade. Entre esse futuro e presente impossíveis (sobre)vivemos afogados em enchentes, desidratados na seca, asfixiados na poluição do ar ou infectados com novas endemias/pandemias.

Efetivamente estamos acabando com a matriz do nosso mundo ou da nossa existência. Se não nos sensibilizarmos com o que estamos vivendo e com esse fogo coordenado con(sumindo) com tudo, será que vamos parar nas bolhas da distopia do Mundo Impossível? Inclusive a questão: quem mandou queimar as matas e florestas? Mas a minha pergunta que atravessa o livro sempre foi: quais mundos são possíveis?

Não há saídas fáceis, mas como diria Krenak, “o futuro é ancestral” e se queremos ainda o direito ao céu precisamos deixar a natureza regenerar outros mundos possíveis.

É mais fácil imaginar um asteroide destruindo a Terra do que outras formas de existir. Já é tempo de semearmos outros mundos possíveis, pois esse com essa forma de “crescimento” e consumo acabou. Já vivemos este capitalismo de desastre ou “pós-capitalismo” que cobra mais caro pelo umidificador de ar conforme a demanda. Que quer grandes empresas para fazer grandes reconstruções. Que em prol da empresa que produz “produtos fitossanitários” quer impedir uma lei de agroecologia ao mesmo tempo que quer reduzir a distância de aplicação de agrotóxicos de residências. O famoso (des)envolvimento. Mas como já disse Nego Bispo: precisamos do envolvimento.

Então, pergunto: e as saídas? Como vamos semear caminhos de futuro?

Não há saídas fáceis, mas como diria Krenak, “o futuro é ancestral” e se queremos ainda o direito ao céu precisamos deixar a natureza regenerar outros mundos possíveis.

Eu tenho recomendado, deste lugar de médica de família e comunidade, vários cuidados sobre o que estamos vivendo: sejam máscaras contra a poluição do ar, evitar atividades externas, cobranças de políticas públicas em todos os níveis (do municipal ao federal) para assumirmos que estamos nesta Emergência de Saúde Climática. Em especial, fiscalização e investigação para quem queima — estes crimes cobram preços populacionais muito altos. Certamente, ao longo destes dias muitos já morreram com a poluição do ar, principalmente maiorias no nosso Brasil: pessoas negras e em situação de vulnerabilidade. Sufocadas, queimadas, infartadas, desidratadas.

Somos a floresta queimando, por isso que dói tanto. Mas diferente das árvores, nossos pés não têm raízes, então podemos plantar, movimentar, dançar e não deixar cair o céu.

Em meio a isso, sem querer uma resposta simples, tenho vontade de plantar, colocar sementes em berços de futuro. Voltar a ver o céu azul. Entre tantas recomendações, distopias e ficções reais, médicas e não médicas, digo: plantem árvores, em todos os lugares (lembrem-se de que devem ser nativas, verifiquem os planos de urbanização) vamos semear esse mundo novo. Vamos sair dos mercados e ir para as feiras estimulando a economia circular. Vamos tirar os livros do plástico, temos que nos livrar do petróleo. Vamos: somos natureza!

Mayara Floss é escritora, médica de família e comunidade, doutoranda em Patologia da Universidade de São Paulo, estuda o tema da saúde planetária e mudanças climáticas. Em 2024 lançou o livro de contos ‘Mundo Impossível’.

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