“Os gibis eram tão populares no Brasil entre os anos 1950 e 1980 que vendiam mais de 800 mil exemplares. Teatro e quadrinhos foram, historicamente, um entretenimento das classes da base da pirâmide social”
Edição e arte: Vitor Diel
No final de 2024, os resultados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil chamou atenção dos meios de comunicação. Realizada pelo Instituto Pró-Livro (IPL) desde 2007, naquele ano a pesquisa registrou que 53 % dos brasileiros não haviam lido um livro nos três meses anteriores à pesquisa. Nem um livro completo e nem mesmo parte de uma obra. Além disso, indicou a perda de 7 milhões de leitores no espaço de 4 anos. A pesquisa não faz uma distinção se aquilo que é considerado livro inclui também as histórias em quadrinhos, mas elas aparecem no décimo segundo lugar quando os entrevistados eram convidados a lembrar uma obra para leitura. Em terceiro lugar ficou a Turma da Mônica, como um aglomerado de produtos de leitura e não especificamente quadrinhos. Em primeiro lugar constava a Bíblia e, em segundo, O Pequeno Príncipe.
Também, de acordo com a pesquisa, o desinteresse do público brasileiro pela leitura começa após os dezoito anos e somente 17% dos adultos com mais de 40 anos leem por prazer. As principais razões para deixar de ler foram a falta de tempo (47%), o fato de não gostar de ler (28%) e a falta de paciência (8%). Apenas 20% gostam de ler no seu tempo livre, já que os afazeres de acessar a internet, trocar mensagens online e assistir televisão ocupam o pódio das respostas fornecidas. A pesquisa confirma e aprofunda o que já se sabia sobre o Brasil: que a leitura e o consumo de livros são um hábito de elite.
Elite vem do latim clássico, eligere, que significa escolher. Portanto, os participantes da elite são tidos como os “escolhidos”, os “especiais”. Da utilização no século XVIII como produtos de qualidade superior, passou a nomear posteriormente também algo de uma hierarquia nobre ou um grupo dominante dentro das camadas sociais. Ela também se refere aos formadores de opinião, aqueles que dirigem o povo, que detêm o conhecimento (ou que o organizam e difundem), principalmente por serem poucos e distintos. Isso inclui, claro, os influencers das redes sociais.
Outro fator que caracteriza uma elite dentro de um determinado sistema é seu poder. Seja ele de influência, de liderança, de compra, ou simplesmente de dominação sobre os demais. Segundo Michel Foucault, o poder está relacionado com o que pode ser dito e o que não pode ser dito. Quem tem poder cria uma visibilidade, enquanto quem não tem poder não é escutado. No universo geek/nerd existe uma relação estreita do poder com o saber. Quem acumula mais conhecimento sobre determinado assunto, via de regra, possui mais poder e visibilidade nessa comunidade. Isso se relaciona com o capital cultural e simbólico de Pierre Bourdieu e com a sociedade de acumulação.
Entretanto, mesmo com o fato de a internet permitir o acesso a diversos conteúdos do universo geek/nerd, é o capital econômico que faz mover esse universo. Ainda são mais valorizados aqueles que possuem mais recursos de compra para terem acesso a itens exclusivos que possuem mais capital simbólico, ou seja, que têm um significado de distinção entre colecionadores e entre entusiastas e que criam uma elite de escolhidos que têm acesso a eles. Quanto mais exclusivo for o ítem, maior seu valor, significado que é agregado também a quem o compra ou possui. Quanto mais exclusividade, acúmulo de ítens e de saber sobre esses ítens, maior a possibilidade de poder de influência do indivíduo consumidor.
“Existiram versões em capa dura de quadrinhos desde que passaram a ser valorizados como uma espécie de literatura, no final dos anos 1980, mas a popularização dessa prática se deu quando títulos menos nichados e mais conhecidos passaram a ter esse tratamento”
Assim, dentro do universo geek/nerd nem sempre o saber e o capital cultural são ferramentas de mobilidade social, mas sim de engessamento social, de frustração e de manutenção das elites e do poder e influência nas mãos de poucos. Como a manutenção do poder (econômico, cultural, de saber, político) interessa às elites, pouco será feito para mudar esse panorama, a não ser que se consiga vender produtos ainda mais caros e luxuosos para uma parcela ainda menor de pessoas, e não o contrário.
Foi o que vimos acontecer no mercado de quadrinhos brasileiro (e, em certa proporção também no mercado mundial, mas aqui iremos analisar as mudanças do mercado brasileiro). O Brasil começou a ver o mercado de quadrinhos de luxo surgir com a projeção dos encadernados em capa dura. Existiram versões em capa dura de quadrinhos desde que passaram a ser valorizados como uma espécie de literatura, no final dos anos 1980, mas a popularização dessa prática se deu quando títulos menos nichados e mais conhecidos passaram a ter esse tratamento. Duas iniciativas escancararam as portas das capas duras para alçar novos voos: a coleção em capa dura de Sandman. da Conrad (2005) e a Coleção Histórica Marvel, da Panini Comics (2007).
Essa disseminação da prática da capa dura nos quadrinhos no Brasil foi tal que permitiu o lançamento da Coleção Oficial de Graphic Novels da Marvel (2013), pela Salvat. A coleção tinha o artifício de atrair o leitor para os primeiros números da coleção a um preço de um dígito e, depois, começava a inflacionar o valor. A iniciativa deu tão certo que a Salvat lançou pelo menos mais cinco coleções de quadrinhos (algumas delas concomitantes) e outras editoras como Planeta, DeAgostini e L&PM lançaram outras coleções nos mesmos moldes.
O próximo estágio da elitização dos quadrinhos, em termos de difusão da prática da capa dura e acabamentos de luxo nos quadrinhos, bem como a venda exclusiva pelo site de compras online Amazon, foi a criação das editoras-antes-canais-de-youtube Pipoca & Nanquim (2017) e Comix Zone (2019). Cria-se aqui uma tripla fórmula de elitização dos quadrinhos: ítens luxuosos, comercialização exclusiva e a curadoria de influencers. Tudo isso envolvendo títulos pouco procurados pelos leitores, mas disponibilizados como uma necessidade vital de compra para os “verdadeiros fãs de quadrinhos”, incluindo valores de capa acima dos praticados no mercado em geral.
A fórmula é genial. Ao menos para aqueles que se beneficiam dela. Ela consegue concentrar as rendas do mercado de quadrinhos nacional em menos mãos do que fazia antes, tornando a leitura e a coleção de quadrinhos um hábito ainda mais elitizado e que demanda mais aportes de investimentos por parte de menos e mais fiéis compradores.
Mas por que deixamos nos levar por essa ladaia? Isso é culpa dos nossos neurônios-espelho, que são responsáveis não somente pela nossa vontade e atuação quando evitamos pessoas, mas também pela nossa empatia. Isso é amplificado pela forma repetida a que somos expostos a esses produtos ou a discursos sobre esses produtos, o que acaba tornando esse produto mais desejável. Por isso a importância de os editores serem também influencers (prática que a Panini Comics também adotou).
Além disso, existe a ação da dopamina no cérebro, porque estabelecemos uma “terapia do consumo”. A compra nos dá uma sensação de recompensa, uma sensação de bem-estar passageira, que nos faz continuar comprando mesmo quando nosso lado racional diz que aquilo é suficiente. A ação conjunta da dependência da dopamina e dos neurônios-espelho mexe também com nossa percepção de segurança. Um ritual de compra nos dá a ilusão de que estamos no controle da situação, mesmo vivendo em um mundo caótico em que influencers nos dizem o que fazer e o que comprar o tempo todo. Acessar a Amazon toda semana ou ir a uma banca e livraria comprar um quadrinho tem muito mais a ver com a busca pela segurança e pelo controle (talvez perdidos nos momentos em que o nerd/geek sofria bullying) do que realmente com uma necessidade de comprar ou uma vontade de ler quadrinhos.
O mesmo pode ser dito sobre o ato de colecionar, que tem a ver com manter as coisas seguras, juntas sob o mesmo teto, sob a mesma posse. Controle e segurança. Ao mesmo tempo ajuda no entrosamento e aumenta a auto-estima, dando uma sensação de busca pelo completo, de um movimento positivo sendo feito em direção a ser um ser humano pleno e não de identidade estilhaçada ou desprezada. Algo, mais uma vez, relacionado com a busca de padrões sólidos na vida e de um ritual para nos sentirmos acolhidos.
Pensando economicamente e sociologicamente, essa dependência do mercado também tem a ver com a ascensão do neoliberalismo como condutor das relações humanas na contemporaneidade. A sensação de incompletude do ser humano pode ser regulada através de seu poder de compra. Se ele não sabe sobre si mesmo, tem dúvidas, preocupações que o deixam inseguro sobre seu papel no mundo e sobre o significado de sua existência, ele pode comprar produtos que preencham esse vácuo e sanem essas preocupações através de seu poder. Ao menos é isso que subliminarmente nos dizem os meios de comunicação e as pessoas por trás deles.
O neoliberalismo também incentiva a concorrência, então o indivíduo sempre estará inseguro a respeito de seu papel incompleto e sempre vai buscar se colocar como mais poderoso (ou conhecedor, no caso do universo geek/nerd) que alguém para buscar essa segurança. Assim, quanto mais produtos acumulados dessa cultura, mais vencedor da concorrência se sentirá o indivíduo, mesmo que continue sentindo falta de muitas coisas, inclusive proteção, afeto, segurança, aceitação e controle.
Vale lembrar que o mercado também está sempre em mudança. O quadrinho que era moda há um ano atrás não tem mais nenhum influencer falando sobre ele hoje. Mais um motivo que apela para a necessidade de ter/saber daquele produto/quadrinho e para uma coleção e uma identidade sempre fraturada e incompleta. Nesse sentido, nossa identidade geek/nerd e todas as demais identidades (nossa noção de pessoa) estão imbricadas nos nossos hábitos de consumo, que precisamos satisfazer. Não é de se estranhar que as redes sociais nos vendam produtos baseados na nossa identidade – nos nossos acessos a sites e no que “consumimos” de conteúdos online. Talvez o fandom geek/nerd ainda seja um espaço de resistência ao neoliberalismo em diversos sentidos, mas ao mesmo tempo que seja um espaço que coopta com ele. Ressaltando que os espaços de resistência só existem porque alguém viu uma oportunidade de consumo e de venda neles.
“Os gibis eram tão populares no Brasil entre os anos 1950 e 1980 que vendiam mais de 800 mil exemplares. Teatro e quadrinhos foram, historicamente, um entretenimento das classes da base da pirâmide social”
Em artigo publicado recentemente no jornal inglês The Guardian, o celebrado escritor de quadrinhos, Alan Moore, disparou: “Enquanto a história em quadrinhos vulgar era originalmente oferecida apenas às classes trabalhadoras, os altos preços de varejo impediram qualquer público, exceto os mais ricos; gentrificou um bairro de favela culturalmente movimentado e animado. Esse aumento na idade e no status do fandom pode explicar seu senso de privilégio atual, sua tendência a criticar e criticar em vez de contribuir ou criar. Falo apenas do fandom de quadrinhos aqui, mas tenho a impressão de que essa beligerância reativa — geralmente de conservadores brancos de meia-idade — agora faz parte de muitas comunidades de fãs”.
Em seu discurso, Moore chama a atenção para como a elitização produz pessoas conservadoras e reacionárias, que acreditam que estão sempre certas e que não dão espaço para o surgimento da dúvida ou da alteridade. O conservadorismo e a elitização também provocam um outro fenômeno no mercado dos quadrinhos, que é o apreço por materiais “clássicos” em detrimento das novidades. Como se naquilo dado como “garantido” pudesse se encontrar mais daquele conforto, segurança e controle mencionados anteriormente. Isso também indica a dificuldade, na mente dessas pessoas da fabulação de novos mundo s realidades, por isso dependem do respaldo da crítica apoiada no discurso de que “na minha época era melhor”, e “hoje só tem porcaria”, revelando um ressentimento sobre um mundo que dá a ilusão que não foi feito para essas pessoas, mas que lutam com todas as forças para mantê-lo assim: para poucos.
Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, o escritor francês Édouard Louis citou Jean-Paul Sartre quando perguntado por que era a classe dominante, a elite, que ia ao teatro, que falava sobre o teatro, que criticava, que sabia quem eram as pessoas na frente e atrás do palco, e que se colocava como aquela que melhor se relacionava com ele. Sartre, então, respondeu: “A questão não é por que o teatro é burguês, mas sim como o teatro se tornou burguês”.
O teatro antigo grego, assim como as histórias em quadrinhos, hoje elitizadas, têm uma origem popular, até marginal, direcionada a um público massivo. Os quadrinhos se difundiram através das seções próprias em jornais, assim como no Brasil, nos suplementos. Shakespeare mobilizou centenas de pessoas em suas peças. Os gibis eram tão populares no Brasil entre os anos 1950 e 1980 que vendiam mais de 800 mil exemplares. Teatro e quadrinhos foram, historicamente, um entretenimento das classes da base da pirâmide social.
Sartre teria dito: “Para escrever a história do teatro, não se deve escrever a história de um gênero, de uma essência ou uma definição, e sim a história de um roubo: como a classe dominante roubou o teatro para fazer um objeto de distinção que a distingue da classe operária”. É preciso pensar como esses espaços e ferramentas de cultura se tornaram uma forma de gentrificação, de higienizar, de separar o acesso de determinadas classes sociais e até mesmo determinadas identidades de poderem usufruir esse tipo de entretenimento e conviver nos mesmos espaços (online ou offline) que a elite.
Existe aí um interesse em manter a arte e a cultura longe das classes dominadas porque são ferramentas de emancipação, de liberdade da opressão, de buscar novos paradigmas e possibilidades para sair da situação de dominação. Assim, as artes e culturas marginais são sequestradas e apropriadas pela elite para que seu projeto de controle possa continuar vivo e beneficiando cada vez pessoas mais selecionadas e em um número menor.
Referências:
Barros, Douglas. O que é identitarismo? São Paulo: Boitempo, 2024.
Lindstrom, Martin. A lógica do consumo: verdades e mentiras sobre por que compramos. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2023.


Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges
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