“As diferentes formas com que a colonização se apresenta, baseadas nas lógicas da governabilidade neoliberal, definição de Foucault, trouxeram a humanidade até essa situação limítrofe”
Edição e arte sobre reprodução: Vitor Diel
Estamos assistindo ao surgimento de um novo ator no sistema mundo, surgido da união em outras bases da principal máquina de guerra do planeta, com as empresas que controlam o fluxo de dados e igualmente a pesquisa sobre inteligência artificial. O retorno de Trump ao poder carrega com ele as aspirações da chamada nova direita conservadora e, ao mesmo tempo, incertezas sobre o futuro dos seres humanos. Essa união se dá em diálogo com o nazismo – explicitado pela saudação de Musk e de Bannon, esse em fala também sobre o Brasil, com o poder branco e toda reafirmação eurocêntrica, xenofóbica, machista, classista, capacitista entre outros, a ameaça intervencionista territorial e digital e também o negacionismo climático.
Os acontecimentos de nosso tempo já produziam dúvidas se vivemos o fim de uma era, ou o fim da humanidade. Há quem fale sobre a crise do capitalismo e a necessidade em se disputar uma “nova ordem material e simbólica”, como apontou Fanon para superação do colonialismo – o que não parece viável. A emergência dessa nova máquina tecnocapitalista-militar, no entanto, complexifica tudo e aponta para um novo mundo. Os sinais do que vivemos até agora fez com que muitos estabelecessem uma relação com textos distópicos mais populares, como 1984, de Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Huxley. Explicar a partir dessas obras apontam para a primeira hipótese. No entanto, fica muito incerto para o contexto de tempo que vai emergir principalmente pela intervenção incontrolável do clima.
A narrativa de 1984 estabelece uma relação entre totalitarismo, o poder das corporações e a influência da tecnologia. Se parece muito com esse ator que se desenha com a posse de Trump. No entanto, me chama atenção um texto escrito em crítica e contraposição à Orwell que é 1985, de Anthony Burgess, autor de Laranja mecânica. No texto, entendido como cacatópico, ou seja, que possui as piores características de uma utopia, o autor chama atenção para os perigos do conformismo e dos extremos ideológicos na vida cotidiana que também marcam as relações sociais contemporâneas. Um dos principais sintomas disso é a morte das grandes narrativas.
“No atual contexto, a grande narrativa tem sido substituída pelos 280 caracteres, ou então pelos infindáveis três minutos do tiktok. Como sonhar com outros futuros em três minutos?”
Sempre que falo sobre isso, lembro do texto de Benjamin, A morte do narrador, escrito no contexto da primeira guerra mundial e do silêncio dos soldados e sociedades frente a experiência da guerra, entendida como indizível. No atual contexto, a grande narrativa tem sido substituída pelos 280 caracteres, ou então pelos infindáveis três minutos do tiktok. Considerando que precisamos de um outro projeto de futuro e isso passa pela formulação de novas utopias, entramos num problema central do contemporâneo. Como sonhar com outros futuros em três minutos?
A última grande utopia do nosso tempo ganhou materialidade no Fórum Social Mundial, guardado no slogan “Um outro mundo possível”. Apesar das edições seguirem acontecendo, o projeto perdeu vigor e visibilidade. Muito pelo aprofundamento da desigualdade social e necessidade cotidiana das pessoas garantirem o direito mais básico de alimentação. Quem luta por um prato de comida, não tem tempo para a disputa política, nos ensinou Clóvis Moura. Esse papel serve aos letrados. Mas como fazê-lo se os letrados ainda pautam seus projetos pela luta de classes? E mais do que isso, se muitos estão submetidos aos algoritmos das plataformas de redes sociais?
Algo novo precisa surgir. As pessoas das comunidades tradicionais, feministas, lgbtqiapn+, indígenas, negras têm apresentado possibilidade, fugindo do vazio epistêmico e ontológico em que a colonização nos colocou. As propostas, no entanto, ainda estão à margem e não são consideradas no debate político. As diferentes formas com que a colonização se apresenta, baseadas nas lógicas da governabilidade neoliberal, definição de Foucault, trouxeram a humanidade até essa situação limítrofe. Talvez não haja tempo para uma outra globalização, como projetou Milton Santos em seu texto final. No entanto, há pistas nesta e em muitas outras proposições. Precisamos é circulá-las e construir utopias. Afinal, não há para onde olhar se não há esperança e projeto futuro. Precisamos de novas utopias.
Referências
Burgess, Anthony, 1985. Porto Alegre: LPM, 1980.
Fanon, Franz. Condenados da Terra. Juiz de Fora: UFJF, 2005.
Huxley, Aldus. Admirável Mundo Novo. Rio de Janeiro: Globo, 1984.
Moura, Clóvis. Dialética radical do negro brasileiro. São Paulo: Fund, Mauricio Grabois/Anita Garibaldi, 2014.
Orwell, George. 1984. São Paulo: Paulus, 2023.
Santos, Milton. Por uma outra globalização. SP/RJ: Record, 2001.


Deivison Moacir Cezar de Campos é jornalista, doutor em Ciências da Comunicação e doutorando em História. Professor do PPG em Comunicação Social e coordenador do curso de Jornalismo da Escola de Comunicação, Artes e Design – Famecos/PUCRS. É pesquisador vinculado aos grupos de Comunicação e Mídia da ABPN; Núcleo de Estudos e Pesquisas das Gramáticas Raciais da Comunicação; Comunicação Antirracista e Pensamento Afrodiaspórico da Intercom. Coordena o grupo de pesquisa Muntu: Comunicação, Políticas dos Corpos e Interseccionalidades da Pucrs/Cnpq. Carnavalesco. Ritmista da União da Vila do Iapi, cultiva um amor tátil pelos livros.
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