“Muitos quadrinistas ingleses também criaram seus mundos paralelos, que concentram todo o poder inato do mundo. Não é apenas uma prerrogativa de Alan Moore e Grant Morrison”
Edição: Vitor Diel
Arte: Guilherme Smee e Vitor Diel
Alan Moore e Grant Morrison. Ambos fazem parte da Invasão Inglesa nos comics de super-heróis dos Estados Unidos. Os dois arrastam multidões de fãs nos quadrinhos e fora deles por causa de seus famosos trabalhos, que têm uma maneira peculiar de encarar os limites entre a realidade e a ficção. Existe ainda outro ponto em comum entre a forma como Alan Moore e Grant Morrison encaram a vida e também a forma como constroem suas histórias, esses grandes roteiristas acreditam na magia como forma de acessar a inspiração necessária para desenvolver sua criatividade e sua consciência sobre o mundo.
Para Moore e Morrison, a magia não é algo que é exercido com poderes sendo lançados uns contra os outros, com poções, com adivinhações do futuro ou aquilo que geralmente é associado com magia. Também não é relacionada à mágica: o escapismo, tirar coelhos da cartola ou ainda fazer truques com cartas. A magia sobre a qual Moore e Morrison se apoiam tem a ver com uma figura histórica e polêmica chamada Aleister Crowley. Talvez você já tenha ouvido falar de Crowley através da obra de Raul Seixas, que deixou o seu Livro da Lei muito famoso aqui no Brasil. Músicas como A lei, Metamorfose ambulante e Sociedade alternativa foram inspiradas diretamente dos ensinamentos mágicos de Crowley. Como dizem as músicas de Raul Seixas, a magia do ocultista inglês tinha muito mais a ver com como estamos conscientes do mundo ao nosso redor e como encaramos a nossa realidade, para a partir disso, modificar o mundo e a realidade com o que Crowley pensa como magia.
Crowley fundou um sistema de crenças chamado Thelema, que é tido por estudiosos e seguidores como uma religião. Ele acreditava que no século vinte a humanidade estaria sob controle de si mesma como nunca esteve, nomeando essa era de Aeon de Horus, ou o Novo Aeon, das músicas de Raul Seixas. O Thelema gira em torno da ideia de que cada ser humano tem a Verdadeira Vontade, fato que deve descobrir e perseguir, e que ela existe em harmonia com a Vontade Cósmica que permeia o universo. Por isso, a prática da magia de Crowley tem a ver com a possibilidade do ser humano fazer com que sua consciência e sua vontade entrem em sintonia com o universo. A sexualidade, assim como nas obras de Moore e Morrison, tem um papel fundamental no pensamento de Crowley, uma vez que ele já foi considerado “o homem mais perverso do mundo” devido a suas práticas sexuais e não sexuais. O sexo, dentro da doutrina de Crowley, era considerado um sacramento e muitas vezes manifestado como Bolos de Luz, um biscoito contendo sangue menstrual ou uma mistura de sêmen e fluidos vaginais.

Vamos entender um pouco mais sobre a magia de Alan Moore e Grant Morrison baseada nas leis de Crowley através de uma entrevista que Moore deu a Eddie Campbell e que está presente no livro Palavras, Magias e Serpentes, bem como o capítulo Pop Magic!, de Grant Morrison, incluído no Book of Lies: The Disinformation Guide to Magick and the Occult.
O texto de Morrison é menos uma discussão sobre a magia e mais uma espécie de manual de como usar a magia. Ele já havia apresentado coisa semelhante quando pediu aos leitores de sua série autoral Os Invisíveis que se masturbassem ao olhar um símbolo impresso no quadrinho que, segundo a mágica de Morrison, se chama sigilo. Vamos voltar a isso oportunamente. A magia de Morrison, baseada no Thelema de Crowley, envolve a “consciência mágica”, que o autor escocês define como uma prática que deve ser estabelecida até que ela se funda com e se torne consciência cotidiana. Dessa forma a consciência mágica passa a fazer parte do estilo de vida do praticante.

“Tudo o que você precisa para começar a prática da magia é concentração, imaginação e a habilidade de rir de si mesmo e aprender com os erros” coloca Morrison, e acrescenta que “qualquer coisa que você possa imaginar, qualquer coisa que você possa simbolizar, pode ser feita para produzir mudanças mágicas em seu ambiente”. Isso tem a ver com ele ter lançado mão do sigilo e da masturbação para conquistar a mudança que ele queria para sua série Os Invisíveis.
Para Grant Morrison, o sigilo, ou seja, um símbolo fora do comum, desenhado em uma superfície, é uma das técnicas mais efetivas de todas as armas do arsenal do mágico moderno. Um sigilo é um símbolo magicamente carregado. Ele explica que “a técnica do sigilo foi reconceitualizada e modernizada por Austin Osman Spare no início do século XX e popularizada pelos Chaos Magicians e Thee Temple ov Psychick Youth nos anos 1980”. Morrison explica que a masturbação para um sigilo funciona porque é no momento em que nos masturbamos em função de uma determinada fantasia, concentramos nossas ideias e forças imaginativas nessa fantasia, que no caso, pode ser substituída por um sigilo. Ele sugere a prática do onanismo porque ela pode ser divertida para a maioria das pessoas, mas que não significa que ela concretiza seu desejo. “Se isso fosse verdade, cada vaga fantasia que tenhamos em nossas cabeças no momento do orgasmo se tornaria realidade em poucos meses. A intenção é o que faz a diferença aqui”, atesta Morrison. Por isso, para ele, a magia também envolve fantasia, e a criação de mundos nos quadrinhos e na ficção também é parte de uma magia, porque damos significado real a algo que veio da criatividade.
“Para Grant Morrison, o sigilo, ou seja, um símbolo fora do comum, desenhado em uma superfície, é uma das técnicas mais efetivas de todas as armas do arsenal do mágico moderno”
Morrison acredita que “a realidade é baseada na linguagem”. E, como diz o filósofo Willard Van Orman Quine, a linguagem é uma arte social. Ou seja: as palavras têm significado para nós, porque estamos acostumados com a maneira que elas são usadas pelos outros, não porque existe uma ligação entre palavras e coisas reais. O modo como a linguagem é usada socialmente a torna significativa. Ou seja, existem expressões que só fazem sentido para um nicho.
Precisamos ter sempre em mente que, essencialmente, a linguagem é sugestão. Por isso, escritores são chamados de magos das palavras. Por isso, ao usar a prática psicológica psicodrama – em que dizemos imaginariamente para as pessoas o que realmente queremos dizer – estamos usando linguagem e sugestão. Ou nos mantras repetidos incansavelmente por budistas, hippies e quetais. Até os próprios e atualíssimos memes da internet são palavras mágicas que povoam nossas mentes coletivas e nos sugerem coisas.
Dentro da filosofia mágica de Alan Moore, a magia também é um fenômeno linguístico, já que ele cita Aleister Crowley quando se referia à magia como “vírus da linguagem”. Não por acaso, esse é o mesmo nome de um livro de Richard Brodie que fala sobre memes. Mas não os memes da internet, mas esse fenômeno na acepção do biólogo Richard Dawkins, que acreditava que os memes estão para a cultura assim como os genes estão para a biologia, são a menor unidade que carregam informações de lá para cá. Memes, segundo Dawkins, seriam um neologismo das palavras mimesis (imitação) e genes. Além disso, Moore compara nossa consciência como um fluxo contínuo de memes, distintos e fragmentários, no sentido de ideias viralizadas que seriam a contraparte metafísica dos genes. No caso de Morrsion, é usada por repetidas vezes nas suas histórias a teorias dos fractais, em que um todo é feito pela soma de pequenas partes iguais, como os memes, carregando informações que estão na mente das pessoas de tempos em tempos.

Além disso, Moore inventou um conceito para se referir ao espaço que cabe às idéias, que ele chamou de “ideário”. A ideia de espacializar as ideias não é nova e, talvez Moore não tenha ouvido falar, vem do semioticista russo Iuri Lotman, que cunhou a semiosfera. A semiosfera seria como a biosfera, só que em vez de vidas, traria um fluxo constante de um bioma de ideias em diversos níveis. Seriam as trocas entre as concentrações de idéias, ou sentidos, dentro da semiosfera que fariam com que elas circulassem, mudassem de sentido em certos tempos e lugares, e que geraram aquilo que chamamos de cultura, que é memória coletiva desses sentidos e ideias circulantes. Isso também tem muito a ver com a acepção original de Dawkins para os memes, da cultura e da internet, e claro, da Thelema de Crowley.
Alan Moore acredita que invenções que se separam em pouco tempo e de diferentes lugares como a do avião por Santos Dumont ou pelos Irmãos Wright e até mesmo a criação dos quadrinhos disputada por Estados Unidos, França, Inglaterra, Alemanha, Suíça e Brasil têm a ver com o ideário. “Se o ideário não existe, então essas numerosas descobertas independentes de máquinas a vapor não passariam de coincidências inacreditáveis. Agora, se o ideário ou algo do tipo existir, então podemos supor que as ideias sejam o equivalente a objetos sólidos em termos de espaço”, afirma Moore, que acredita que o ideário é uma noção central no seu conceito de consciência e criatividade.
Muitos quadrinistas ingleses também criaram seus mundos paralelos, que concentram todo o poder inato do mundo. Não é apenas uma prerrogativa de Alan Moore e Grant Morrison. Esses mundos poderosos de magia são memes, fazem parte do ideário, ou da semiosfera, como preferir. Todo esse “poder”, tanto no sentido das possibilidades quanto da força, está contido, por exemplo, no Barbelith, espaço-realidade que Grant Morrison criou em 1994, para a série mágica-surrealista Os Invisíveis. Conforme a própria definição do escritor, Barbelith é a placenta do mundo, um lugar benigno e inteligente, que tem a função de ajudar os humanos a atingirem sua natureza verdadeira além do conceito subjetivo do “self”.
Se estendendo para além, ou talvez um pouco aquém do Barbelith, temos o conceito da Immateria, criada em 1999, por Alan Moore, em uma de suas melhores séries, Promethea. A personagem principal desse quadrinho, a Promethea, é um avatar da imaginação e a Immateria é o reino da imaginação, onde acontecem as histórias, as artes, a magia e todo nosso estofo criativo. Esse avatar já habitou diferentes corpos desde a invenção da escrita e vem mudando seu aspecto conforme o conceito de imaginação vem mudando. Promethea se manifesta no mundo real ao longo dos séculos, por meio da imaginação de uma grande quantidade de indivíduos, que conseguem incorporá-la e canalizar a energia dela. Promethea usa a imaginação como magia e a manipula.
Retomando o conceito de magia por Alan Moore, ele explica que “magia não é nem um pouco um território insondável e arcaico. Ao contrário, é um universo que você lidou a vida inteira de vários modos, só não pensou nele desse jeito”. Mesmo assim, Moore expõe que “não existe magia, exceto na ficção. Não existem deuses, exceto na mente humana. Magia não existe de fato, não fora da ficção ou da enganação, o que por sua vez sugere que magos também não existem num supostas autoridades supremas em magia. Todos esses sujeitos, eu incluído, claramente inventam tudo isso conforme se engajam mais e mais. Magia é composta de fantasias e dissimulações extremamente detalhadas, mas ainda fantasias e dissimulações”.
A linguagem assim como as máscaras sociais que usamos para construir nossas identidades também são fantasias e dissimulações, do jeito como Moore define a magia. Ainda assim, a magia, a identidade e a linguagem são muito úteis para a convivência social dos seres humanos. O que nos leva a perguntar o que levou Moore e Morrison a escolherem a magia? Morrison se voltou para a magia após uma experiência de quase morte, depois de uma cirurgia de apendicite mal feita, que o levou a viajar até Katmandu para buscar o sentido da vida e foi onde teve outra experiência: contatos imediatos com seres interdimensionais. Com Moore a coisa foi mais mundana, foi uma espécie de vacina contra “uma fórmula de leve colapso mental a ponto de seu corpo não ter mais condições de produzir anticorpos para enfrentar a grande loucura quando ela mostrasse as caras de fato”. A grande loucura a que Moore se refere é a velhice. Ou nas palavras dele, a prática da magia seria “uma alternativa a uma incolor crise de meia-idade”.
Para finalizar, dar-se conta de que podemos tomar as rédeas da nossa vida, modificando-a através da nossa vontade, tem a ver com o amadurecimento, algo que acontece quando encaramos o fato da finitude da nossa vida. A magia de Moore e Morrison é, portanto, uma forma de lidar com suas próprias limitações dizendo-se ilimitados, uma forma criar fantasias para nossas existências e sermos dissimulados conosco mesmos, como toda ficção social eficiente.


Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges
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