Guilherme Smee: O orgulho de gostar de “Gibi de Hominho”

“Eu me lembro que uma vez fui pego lendo quadrinhos na frente da banca por alguns colegas na sexta série e que ficaram zoando porque eu estava lendo Batman”

Edição: Vitor Diel
Arte: Guilherme Smee e Vitor Diel

Outro dia começamos uma discussão em um grupo de amigos. Alguns diziam que não viam sentido em ler “gibis de hominho”, outros, que sim, esse consumo tinha sentido e que muitas vezes continha atos políticos. Eu concordei com o segundo time. Não acredito que lemos o que lemos sem buscar um sentido. Não acredito que a escolha que fazemos quando compramos ou lemos um livro ou um quadrinho não tenha um fundo de influência, um sentido, seja ele político ou não.

O próprio nome “gibi de hominho” está carregado de sentidos. A princípio, ele diz respeito aos quadrinhos de super-heróis, que trazem os “hominhos” estampados em suas capas. A palavra “hominho” se refere aos bonequinhos de super-heróis, que atualmente ganharam o nome action figures para fugir do sentido infantil e pouco sério da coisa. Talvez “gibi de hominho” seja uma expressão regionalizada no Brasil, já que para muitos no grupo a expressão não fazia sentido. Alguns levantaram até a questão de que a expressão poderia estar relacionada com outra, como em “tá virando hominho”. Não é o caso. 

Mas se formos procurar sentido, sim, existe um motivo para se associar “gibis de hominho” a “quadrinhos feitos para pequenos homens”. Afinal, existe toda uma educação política dentro desses gibis de como um pequeno homem deve se mirar em grandes homens para se tornar parte importante e, ainda, produtiva, de nossa grande sociedade. O homem ignóbil se transforma em super-homem dentro dessas narrativas e essa deve ser a expectativa de todo homem eficaz e produtivo, válido e digno dentro das lógicas contemporâneas.

Os gibis de super-heróis ensinam valores explícitos que deverão constituir um cidadão modelo na sociedade contemporânea e valores implícitos de como um ser masculino deve se portar nela. Talvez também por essa natureza educadora, de formação de base, continuem sendo considerados “coisa de hominho”, para ficar no mesmo termo, coisa de “homens pequenos”, crianças. Ou pior: pessoas menores, alguém que não deve ser levado em consideração dentro das engrenagens da grande, dura e séria sociedade em que vivemos.

Mesmo com todo o gore, violência, horror, sexo que alguns desses quadrinhos de super-heróis trazem, eles ainda são considerados coisa de criança. Os defensores dos quadrinhos sempre precisam bater na mesma tecla quando precisam defender essa mídia para um público leigo: eles não são só para crianças. E então elencam um punhado de quadrinhos de super-heróis premiados e reconhecidos dentro da gibisfera, mas completamente desconhecidos do público comum. Essa não é a intenção deste texto.

Dentro da sociedade de produção, a diversão frívola que muitos podem dizer que os quadrinhos de super-heróis proporcionam, pode ser algo derrogatório. Eu me lembro que uma vez fui pego lendo quadrinhos na frente da banca por alguns colegas na sexta série e que ficaram zoando porque eu estava lendo Batman. Na verdade o gibi era dos X-Men, o anúncio da quarta capa dessa revista é que era do Batman. Portanto, existe muito mais desconhecimento e preconceito sobre a leitura dos quadrinhos em geral, e em especial a dos super-heróis. 

Não é também por acaso que além do Orgulho LGBTQIA+ exista um Orgulho Nerd e uma data para se comemorar. Embora, claro, o termo nerd tenha assumido nuances indesejadas, que não merecem nenhum grito de orgulho.

Pensando ao aspecto queer da coisa, ou seja, do bizarro, do estranho, do esquisito, o que a sociedade séria e eficaz obriga a gostar, ou o que ela considera derrogatório não fazem nem cócegas para quem se assumiu gay, lésbica, trans ou qualquer outro espectro do arco-íris de gênero e sexualidade. Queer é um termo guarda-chuva para a sopa de letrinhas LGBTQIA+. Gostar de super-heróis enquanto adulto é queer, quer aceitemos isso ou não. Muitas vezes o que é derrogatório é motivo de orgulho para as pessoas queer e é exatamente no fato de sermos estranhos para os demais que nos apoiamos e construímos nossa comunidade através de um refúgio em gostos parecidos. A mesma coisa acontece com a comunidade dos quadrinhos de super-heróis. Não é também por acaso que além do Orgulho LGBTQIA+ exista um Orgulho Nerd e uma data para se comemorar. Embora, claro, o termo nerd tenha assumido nuances indesejadas, que não merecem nenhum grito de orgulho.

Dentro desta associação através do orgulho em ser o que se é, as pessoas que gostam de quadrinhos de super-heróis formam uma rede homossocial. Não confundir o termo com homossexual. Homossocial é um grupo em que as preferências com que as pessoas se relacionam socialmente tem a ver uma com as outras, são parecidas, são iguais, daí o prefixo homo, como em homogêneo. Apesar de tudo, a homossocialidade não acontece de forma diferente quando se trata da comunidade gay, por exemplo. Sublinha-se aí o fato de que ambas as comunidades são quase exclusivamente de domínio masculino. Daí o “gibi de hominho”. Ironicamente, “gibi de hominho” poderia ser também o nome de um produto voltado para o deleite sexual da comunidade gay. Afinal, os gays são considerados homens menores, subalternos, “hominhos”, dentro da ordem social estabelecida.

Participar de uma comunidade e defender os seus anseios e evitar os seus temores é ou não é um ato político? O pessoal é político, como diziam as feministas dos anos 1970, seja isso relegado à área cultural ou à área sexual. Muitas vezes eu acho que sou visto mais como queer, como esquisito, porque eu curto quadrinhos do que por eu me sentir atraído por homens. Mas por outro lado, também sinto uma ligação muito maior com esse meu lado que me faz mais esquisito, que é esse gosto enorme por algo que a sociedade abomina, que é gostar de “coisas de hominho”, interprete como quiser. No fim das contas, me sinto mais pertencente à comunidade dos quadrinhos do que à comunidade gay.

Assim como a comunidade gay, a dos quadrinhos também tem os seus rachas. Como por exemplo, os que abraçam os super-heróis e aqueles que os desprezam. Os quadrinhos são considerados derrogatórios, mas ler quadrinhos de super-heróis é como ser um gay afeminado, fazendo um paralelo com o mundo queer. 

Explicando para quem não está inserido nessa cultura, os gays que denotam feminilidade são preteridos em favor dos gays que conseguem ter mais “passabilidade” como heterossexuais, aqueles que são mais “hominhos” e menos “mulherzinhas”. Sim, é uma questão de performance, ou de performatividade, como diria Judith Butler. Mas dentro da comunidade dos quadrinhos também existe uma performance, que eu diria que é uma performance de gosto. As pessoas se afastam dos quadrinhos de super-heróis porque eles não trazem um status cultural para elas, o status da sociedade séria e eficaz, que vai julgá-los e rir da cara deles por lerem “hominhos”. Mas pergunte aí para os importantes críticos e artistas renomados por onde eles começaram o gosto da nona arte, e garanto que 75% deles vai responder que foram com os “gibis de hominhos”. Sim, os gibis de hominhos tem os seus problemas. Eles são machistas, racistas, homofóbicos, imperialistas. Sim, a enorme maioria dos gibis publicados atualmente e no passado não são 5 de 5 estrelas. Mas os jogos de futebol, as séries de streaming, as premiações do cinema, o jornalismo da Rede Globo, as telenovelas mexicanas, os doramas, o XVideos, os animes japoneses, aquele canal de YouTube que virou um quase canal de TV, e muitos outros tipos de quadrinhos também não têm os seus problemas? O fato é que não são mídias consideradas menores, derrogatórias, feitas para “hominhos” dentro da grande sociedade produtiva e eficaz porque envolve menos dinheiro do que qualquer uma das outras. E, como falei, os super-heróis estão no subalterno no status cultural de uma mídia já marginalizada. É preciso muito orgulho mesmo para continuar gostando de “hominho” dentro das lógicas que não nos diferenciam dos grandes homens dessa grande e esmagadora sociedade.

Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges

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Uma resposta para “Guilherme Smee: O orgulho de gostar de “Gibi de Hominho”

  1. hahaha, passei por essa situação de ser pego no flagra por um colega de escola, estava saindo de uma banca com o gibi na mão e no dia seguinte estava sendo zuado por ler gibi. A minha resposta no modo de defesa foi “pelo menos eu sei ler, seu analfabeto!”…

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