Deivison Campos: Uma viagem às materialidades da literatura na Bahia

“Caetano já chamou atenção em versos ao amor tátil que escolhemos dedicar aos livros”

Edição e arte sobre reprodução: Vitor Diel

A relação da escrita com a experiência não chega a ser uma novidade para escritores, mas a materialidade vivida e a possibilidade de viver o romance para o leitor por si só oferece fruição. Conheci nas férias o Recôncavo Baiano, num projeto familiar de conhecer as pequenas cidades que circundam a Baía de Todos os Santos. Para além de conhecer a cidade de Bethânia e Caetano, ter a oportunidade de visitar um terreiro de Candomblé, criado em 1736 – isso, 1736, e conhecer os artistas escultores da cidade e de São Félix, vivenciei obras de Dias Gomes e Jorge Amado.

O Bem Amado, de Dias Gomes, para além de sua crítica profunda à política e ao coronelismo, tem relação e existe de maneira direta naquela região. O nome da personagem principal – Odorico, faz referência ao rio que banha todas as cidades do Recôncavo, o Paraguaçu. O rio está presente nas principais atividades de toda a cidade e envolve, como uma serpente, toda a baía. Também a especiaria consumida e oferecida pela personagem, licor de jenipapo, é um produto do qual as cidades se arrogam da qualidade da produção artesanal. As cidades fazem limite com o sertão de onde vem o personagem cangaceiro, Zeca Diabo. Outra referência é a presença de lepidópteras – as borboletas, de Dirceu, no semi árido baiano.

A região também é caracterizada pela presença e o cultivo de cajá, apresentando em suas paisagens um grande número de cajazeiras, árvore que dá nome às irmãs que se relacionam das mais diferentes formas com Paraguaçu – que no mundo da vida banha igualmente as áreas cultivadas. Ficaria algum tempo falando dos tipos que se encontram na viagem e a relação deles com a peça/novela. A referência direta às personagens principais me ajudam a contar da maneira como fui atravessado pela escrita e sou afetado pelo que leio em minha experiência.

Essa não foi a única experiência literária. Tive a oportunidade de visitar o Parque Histórico Castro Alves em Cabaceiras do Paraguaçu – também o rio. A casa em que nasceu o poeta dos escravos foi reconstituída no local onde um dia existiu. Nela, estão expostos objetos do poeta – incluído sua escrivaninha, e de sua família, principalmente, fotografias. A fotografia de sua mãe, Clélia de Castro, explica a dedicação do poeta a denunciar a escravidão. Ela, uma mulher negra, filha dita bastarda do major José Antônio da Silva e Castro – cuja história rende uma revisita, que recebeu educação e acolhimento na casa de seu pai/padrinho.

“Caetano já chamou atenção em versos ao amor tátil que escolhemos dedicar aos livros”

A fonte do rio Paraguaçu na área da fazenda da qual a família se abastecia provavelmente é a única coisa que permanece intocada, mas poder compreender o fenótipo da mãe e irmãs do poeta de maneira mais detida esclarece muito sobre sua dedicação às relações raciais. O poeta foi mais um dos personagens históricos negro embranquecido pela história oficial, apesar do volume de seu cabelo em suas pinturas e raras fotografias denunciar essa condição. Além de contextualizar e dar sentido a parte da obra do poeta, também me remeteu ao romance O ABC de Castro Alves, de Jorge Amado, que insere o poeta no contexto de guerra passional entre famílias na qual a sua esteve envolvido. Mas não é só essa a experiência com Jorge Amado.

Há alguns anos tive a oportunidade de visitar a cidade de Ilhéus e encontrei as ruas, cenários e histórias de Gabriela, Cravo e Canela. O bar Vesúvio, em frente à Catedral de São Sebastião, marca em seus drinks e pratos a permanência dos coronéis e suas histórias. A parede do fundo do bar é o muro do Bataclan, que hoje funciona como restaurante e mantém para visitação um memorial ao imaginário de origem do local. Mantido pela prefeitura, há a reconstituição do quarto em que a dona do cabaré vivia – e do qual pouco saía, por ordem de seu coronel. Apesar de não ser o quarto original, todas as peças são da época.

Diferente da narrativa de Amado, Maria Machadão, personagem conhecida pela obra, sintetiza característica da cafetina principal e a amante do coronel – a que ficava presa no quarto hoje memorial. De resto, o prédio, o piso, o espaço do lupanário está tudo lá. No entanto, tudo agora pertence a Vesúvio – a empresa que administra o bar, o prédio onde foi o Cabaré e uma rede de restaurantes. A casa dos Amados, onde o escritor viveu grande parte da infância, fica a menos de 50 metros deste conjunto arquitetônico que centraliza sua narrativa.

A vivência me fez pensar que, mais do que o stimmung, proposto como experiência estética da leitura, para além do sentido, por Gumbrecht, é possível outro tipo de experiência. Encontrar materialidade em lugares, contextos, objetos, essa possibilidade de produzirmos histórias pessoais em contextos em relação com referências a livros que carregamos conosco por nossas leituras. Caetano já chamou atenção em versos ao amor tátil que escolhemos dedicar aos livros. Quero chamar atenção aqui para que estejamos prontos para existir nas histórias que nos afetam, pois somos o que lemos. 

Referências

Amado, Jorge. O ABC de Castro Alves. São Paulo: Cia das Letras, 2010.

Amado, Jorge. Gabriela, cravo e canela. São Paulo: Cia das Letras, 2008.

Gomes, Dias. O bem amado. 27ª ed. São Paulo: Bertrand, 2014.

Gumbrecht, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência, stimmung: sobre um potencial oculto na literatura. PucRio, 2014.

Deivison Moacir Cezar de Campos é jornalista, doutor em Ciências da Comunicação e doutorando em História. Professor do PPG em Comunicação Social e coordenador do curso de Jornalismo da Escola de Comunicação, Artes e Design – Famecos/PUCRS. É pesquisador vinculado aos grupos de Comunicação e Mídia da ABPN; Núcleo de Estudos e Pesquisas das Gramáticas Raciais da Comunicação; Comunicação Antirracista e Pensamento Afrodiaspórico da Intercom. Coordena o grupo de pesquisa Muntu: Comunicação, Políticas dos Corpos e Interseccionalidades da Pucrs/Cnpq. Carnavalesco. Ritmista da União da Vila do Iapi, cultiva um amor tátil pelos livros.

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