Guilherme Smee: Lógicas de papéis sexuais: analisando mangás com relacionamentos gays

“Editoras como Panini e Newpop entenderam que esse é um filão que vende bem”

Edição: Vitor Diel
Arte: Guilherme Smee e Vitor Diel

Em 2024 a presença de títulos com temática Boys Love no mercado brasileiro mais que dobrou. Editoras como Panini e Newpop entenderam que esse é um filão que vende bem. Para aqueles que não sabem o que é o gênero Boys Love, ou BL, dos quadrinhos japoneses, explico que são narrativas em mangá que abordam relacionamentos entre dois homens. Mas espera um pouco: essas revistas em quadrinhos tem como público-alvo mulheres que gostam de ver dois homens se relacionando, e cujo conteúdo não é necessariamente voltado para homens gays. E espera mais um pouco: as mulheres que consomem esse tipo de trama querem ver homens supostamente heterossexuais ou em dúvida sobre a sua sexualidade se relacionando. A coisa vai ficando mais complexa, não é?

Somado a isso, os mangás BL geralmente trazem dois personagens protagonistas em que frequentemente se encaixam em determinadas características ligados aos seus papéis sexuais na trama. Os uke são os personagens mais introvertidos e passivos e os seme são os extrovertidos e ativos. A introversão de alguns personagens chegam a extremos gritantes, uma vez que o mangá guarda em si a arte de tornar tudo muito exagerado, enquanto todos os personagens do contrário dos introvertidos são quase sempre altivos e apaixonantes, sem defeitos.

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Os mangás japoneses são conhecidos por sua demografia, ou seja, os seus públicos-alvo. Por exemplo, os shonen, como na famosa revista Shonen Jump, são voltados para jovens meninos, trazendo histórias de ação. Já os shoujo miram nas jovens meninas, podendo trazer também tramas de ação, mas com foco em relacionamentos. Contudo, o consumo de mangás Boys Love não é bem visto no Japão, as garotas que compram e curtem esse tipo de leitura são chamadas de fujoshi que significa “garota podre”, mas foi um termo que foi apropriado pelas fãs como algo identitário e positivo. O mesmo acontece com os rapazes que curtem esse material, chamados de fudanshi, algo como “homem podre”, ou “homem estragado”. Esse pensamento japonês se origina do preconceito com a comunidade homossexual e também porque se acredita que quando pessoas gostam dete tipo de material estão arruinando a possibilidade de se casarem.

Fiquei muito curioso quando os primeiros mangás BL começaram a ser publicados aqui no Brasil, em especial O Marido do Meu Irmão (Panini, 2019), de Gengoroh Tagame, um exímio criador de baras, quadrinhos japoneses eróticos voltados ao público gay masculino. O resultado é que este é um dos melhores quadrinhos sobre o tema, sensível e educativo sem ser nada “podre” como alguns poderiam pensar. Na verdade o relacionamento homossexual é visto pelos olhos de uma criança, despida de preconceitos, neste mangá.

No outro extremo está On or Off (Newpop, 2020), de A1, que é realmente um mangá erótico e que começou a ser feito no Tumblr. O sucesso foi tanto que já ultrapassou os quatro volumes de um mangá de mais de trezentas páginas. E o detalhe: a cores! On or Off é um mangá BL que não esconde que traz relações sexuais entre homens nuas e cruas. Mas mais ou menos nuas, porque, como é de costume no Japão, os órgão sexuais são riscados com uma tarja que pouco deixa para a imaginação. Nesta narrativa, os papéis de uke e seme são bem definidos, com o subordinado que se apaixona e tem relações com o chefe que, aparentemente é heterossexual. 

Força, Nakamura! (Newpop, 2022), de Syundei, e Acho que meu filho é gay (Panini, 2024), de Okura abordam relacionamentos platônicos entre garotos que estão no colegial. Enquanto o primeiro conta a história de um garoto extremamente tímido, que quer ser amigo de sua paixão, embalado pelas “dicas” dos mangás BL que lê, o segundo traz um suposto romance de dois garotos vistos pelos olhos de uma mãe, que desconfia que seu filho seja gay. Em pequenas histórias, ela vai mais e mais chegando a essa conclusão. Estes dois mangás BL não trazem em nenhum momento relações sexuais. Longe disso, qualquer aproximação ou qualquer sinal de homossexualidade é constantemente evitado.

Por sua vez, os quadrinhos de Mamita, Meu Vizinho Metaleiro (Newpop, 2024) e 10 Coisas Para Fazer Antes dos 40 (Panini, 2024), são duas narrativas que apesar do exagero de timidez, trazem cenas de sexo no final da publicação. Mas essa inclusão obrigatória de sexo parece algo forçado ou até uma violação, contra a vontade dos personagens introvertidos, principalmente em Meu Vizinho Metaleiro, em que o objeto de desejo não é capaz nem de proferir uma palavra. Aqui, os papéis sexuais tão marcados dos BL são mais atenuados. Em 10 coisas para fazer antes dos 40 existe um forte etarismo, em que a idade dos 40 anos são pensados quase como o final da vida. Quem ensina a fazer é mais uma vez Gengoroh Tagame, no BL Nossas Cores (Panini, 2023), que além de trazer um retrato positivo e emocionante do contraste entre relacionamentos homossexuais entre duas gerações, também não traz a separação entre uke e seme, além de não trazer cenas de relações sexuais. Ele trata mais de um garoto que se descobre gay e que tem no dono de uma cafeteria uma espécie de mentor no mundo da homossexualidade assumida, sem envolver as relações sexuais em suas trocas de ideias e sim, a coragem e a ousadia de enfrentar as regras da sociedade.

Por fim, neste meu esforço de ler uma quantidade razoável de mangás BL (dez deles estão listados aqui e você encontra a lista completa abaixo), li também alguns que unem o fato de termos um casal de homens como protagonista e um outro gênero de narrativa. Por exemplo, no mangá criado em 1985, que só chegou agora no Brasil atualmente, Banana Fish (Panini, 2020), de Akimi Yoshida, temos um casal de homens com papeis bem definidos ao menos fora das relações sexuais. Mas sua trama principal não é exatamente o casal, mas a dominação de gangues da Nova York dos anos 1980, mesclando o BL com o policial. 

Já em Tokyo Babylon (Panini, 2024), de CLAMP, um mangá de 1990, traz aquele que considero o primeiro super-herói gay dos mangás, Subaru Sumeragi. Ele desenvolve uma relação platônica e cheia de provocações e sugestões com o herdeiro de uma família rival. Soma-se a isso o fato da diferença de idade entre os dois, Subaru tem 16 anos e seu objeto de desejo tem 22. Mas Subaru também é um ser místico cheio de potencial, assim, esse BL também flerta com o gênero sobrenatural. 

Também, em A Noite Além da Janela Triangular (Newpop, 2022), de Tomoko Yamashita, o gênero que se aproxima do BL é o terror. Acompanhamos um vendedor de livros que é abordado por um psíquico que acredita que ele serve como pára-raios de espíritos malignos que assombram determinados espaços. Somente com o psíquico atravessando a alma do vendedor de livros é que é possível concluir o serviço e afastar as presenças sobrenaturais malignas daqueles lugares. Assim como em Tokyo Babylon e em Banana Fish a relação fica sempre em idas e vindas, em sugestões e insinuações, mas não é consumada e nem assumida propriamente. Contudo, as diferenças físicas e de comportamento entre os uke e os seme são bem marcadas nos três mangás BL de gêneros narrativos diversos.

Para concluir, se percebe como o panorama dos mangás depende dos exageros, dos extremos. É difícil encontrar nuances nessas histórias: ou o sexo é nu e cru ou é evitado como o diabo foge da cruz. Por mais que tenhamos mangás que abordem a sexualidade de forma sensível, como uma conscientização de que é algo natural e que o problema são os tabus sociais, por outro, não conseguimos encontrar um BL que traga o sexo gay como algo que não seja instintivo e selvagem, ou ainda como uma obrigação narrativa. Essa dicotomia, entretanto, é preciso frisar, não é algo exclusivo dos quadrinhos japoneses, muitos quadrinhos ocidentais e até mesmo peças de outras mídias trazem retratações oblíquas do sexo. Quando se trata do sexo gay, precisamos nos perguntar: o quanto disso não respinga na sociedade como uma retratação também da sexualidada e da identidade gay como um todo?

10 Mangás Boys Love para você conhecer o gênero:

O Marido do Meu Irmão (Panini, 2019), de Gengoroh Tagame

Acho que meu filho é gay (Panini, 2024), de Okura

On or Off (New Pop, 2020), de A1

Nossas Cores (Panini, 2023), de Gengoroh Tagame

Meu Vizinho Metaleiro (New Pop, 2024), de Mamita

Força, Nakamura! (New Pop, 2022), de Syundei

A Noite Além da Janela Triangular (New Pop, 2022), de Tomoko Yamashita

10 Coisas Para Fazer Antes dos 40 (Panini, 2024), de Mamita

Tokyo Babylon (Panini, 2024), de CLAMP

Banana Fish (Panini, 2020), de Akimi Yoshida

Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges

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