“O cenário dos quadrinhos na Croácia é bastante rico e diversificado. Seus primeiros quadrinhos começaram a circular por lá ainda no século XIX, o que desenvolveu uma cena pujante na imprensa local”
Edição: Vitor Diel
Arte: Reprodução
Texas Kid, my bro é o primeiro lançamento da estreante editora Poptopia. Trata-se de uma história em quadrinhos croata, impressa em papel couchê preto e branco e capa dura. A história aborda o conflito entre duas criações de um mesmo quadrinista: seu filho real, que aspira seguir os passos do pai e seu filho fictício, Texas Kid, sua maior criação para os quadrinhos.
No começo da HQ acompanhamos a tenra infância deste pai, criador de quadrinhos, nas florestas geladas da Croácia. Primeiro, com três anos, ele bateu em um menino de cinco anos que estava fazendo arruaça na vizinhança. Depois, com cinco anos, ele se perde na mata e é encontrado dentro de um cadáver de um lobo, que ele mesmo matou e abriu para se esconder lá dentro. Com oito anos já começa suas aventuras sexuais com uma menina do seu povoado. O escritor deste conto, Darko Macan, que depois foi adaptado para os quadrinhos pelo desenhista Igor Kordey, usa destes recursos narrativos para apresentar o personagem como um homem hipermasculino, que leva os seus feitos de homem ao máximo e às últimas consequências.
Enquanto isso, somos apresentados ao filho deste quadrinista, que herdou o apuro artístico do pai, mas é mais sensível, mais ligado à mãe – que é bem mais nova que seu pai -, e que não se dá bem em seu relacionamento com a namorada. Então, logo em seguida, quem bate à porta do rapaz é uma presença inusitada: o próprio Texas Kid, que exige ver o seu criador.

Assim, Texas Kid cai nas graças do pai, com seu comportamento irascível, heroico e galanteador com as mulheres. Logo, ele conquista a ex-namorada do filho real, deixando o rapaz à sombra do pai e de Texas Kid mais uma vez. Quando Texas Kid rejeita a comida da mãe do rapaz e seu pai quer bater nela por essa audácia de servir comida ruim ao filho preferido, o rapaz artista precisa tomar uma atitude.
A verve para a metalinguagem de Darko Macan parece ter uma certa influência do escritor de quadrinhos escocês Grant Morrison. Macan é um conhecido escritor de ficção científica e pesquisador de quadrinhos da Croácia. Não por acaso Darko Macan e Igor Kordey eram responsáveis pelo título de Cable quando Morrison estava escrevendo os Novos X-Men. Nesta fase, inclusive, o personagem chega a fazer uma passagem no Brasil, numa rinha de briga de jovens mutantes. Também não por acaso, Kordey foi desenhar Novos X-Men ao lado de Morrison e, posteriormente, foi para X-Treme X-Men que era escrito por Chris Claremont. Contudo, naquela época o traço de Kordey não agradou aos fãs das equipes X, muito em razão dos prazos mensais que precisavam ser cumpridos, o que deixava a arte do croata mais apressada e menos detalhada. Em Texas Kid, my bro, no entanto, Kordey está em sua melhor forma, com sua arte oscilando entre a qualidade de um John Cassaday e um Eduardo Risso, mas mantendo a sua personalidade através de seu trabalho com hachuras. Macan e Kordey já tinham trabalhado em conjunto antes para a Dark Horse Comics, em quadrinhos como Tarzan e Star Wars.
O cenário dos quadrinhos na Croácia é bastante rico e diversificado. Seus primeiros quadrinhos começaram a circular por lá ainda no século XIX, o que desenvolveu uma cena pujante na imprensa local. Isso pelo menos até os anos 1930, quando, sob jugo comunista, a Croácia foi anexada à antiga Iugoslávia. Somente a partir dos anos 1970 a cena voltou a se reerguer e a recomeçar através de fanzines e quadrinhos e a partir de 1989, com a queda do muro de Berlim, seus talentos começaram a ser reconhecidos internacionalmente. Nomes como Goran Sudzuka, Goran Parlov, Danijel Zezelj e Esad Ribic passaram a figurar em quadrinhos da França e dos Estados Unidos.

O fato de Texas Kid, my bro ser um quadrinho croata nos leva a pensá-lo em outras dimensões. A primeira é que a Croácia é separada da Itália, onde o grande personagem de quadrinhos é o cowboy estadunidense Tex Willer, por apenas um mar, o Adriático. Logo, a escolha do antagonista do quadrinho ser um cowboy e não um super-herói, um animal antropomórfico, um ser espacial, faz sentido pela influência sofrida de outro país.
Além disso, os cowboy são, simbolicamente, os guardiões das fronteiras. A Croácia viveu por quase cinquenta anos na cortina de ferro comunista e, além de ter menos recursos financeiros, regulados por Moscou, principalmente nos anos tirânicos de Stalin, os recursos culturais também não chegavam ao país. Esse endurecimento do povo sob jugo soviético é bem marcado no quadrinho na figura do pai quadrinista, que exibe essa masculinidade épica, cheia de feitos memoráveis e que imprime essa mesma visão na sua criatura, o Texas Kid. Por outro lado, o filho que viveu a abertura cultural e econômica da Croácia e é mais sensível e menos machão, não entende as realidades do pai e da sua criatura Texas. Ele não entende por que são feitas convenções de quadrinhos com temática de Texas Kid, para ele, um personagem assim, hiperviril, não está na ordem do dia.
Mas o cowboy também parece estar guardando uma terceira fronteira, além da entre abertura e fechamento do país e do machismo versus sensibilidade. Texas Kid regula a passagem da ficção para a realidade, afinal ele é um filho criado no papel e não biologicamente. Isso fica ainda mais claro – sem spoilers – ao chegarmos no final da história em quadrinhos. Não se explica a razão pela qual Texas Kid vem parar no mundo real, mas a bagunça que ele causa na realidade pode ser também uma analogia para como as obras de ficção também afetam o que sentimos e o que vivemos, como elas são potentes e guiam nossas vidas. mais ainda como guardam nossas fronteiras, deixando com que alguns sentidos que vêm delas mesmas ultrapassam essas barreiras e passem a nos afetar, moldar nossos comportamentos e nossas atitudes perante às escolhas que se apresentam para nós.


Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges
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