“Quando cheguei a Porto Alegre em janeiro de 2001, fui direto conhecer a reunião da Grafar – Grafistas Associados do Rio Grande do Sul, no bar da Casa de Cultura Mario Quintana”
Edição: Vitor Diel
Foto: Renê Cabrales
Quando cheguei a Porto Alegre em janeiro de 2001, fui direto conhecer a reunião da Grafar – Grafistas Associados do Rio Grande do Sul, no bar da Casa de Cultura Mario Quintana. O grupo era composto por cartunistas como Santiago, Bier, Edgar Vasques, Celso Augusto Schroeder, Fábio Zimbres, Rodrigo Rosa e um jovem Rafael Corrêa. Reuniam-se às terças-feiras e estavam organizando uma exposição para o primeiro Fórum Social Mundial, que aconteceria na cidade. Recebi convite de Santiago para participar, mas não consegui, pois ainda não tinha material suficiente, já que havia chegado há pouco de Passo Fundo.
Entre os cartunistas estava Rodinerio da Rosa, que produziu a revista Made in Brazil, ao lado de Jerri Dias e Dregus, com alguns quadrinhos em colaboração com o chargista Halls. Essa publicação se caracterizava por trazer histórias em quadrinhos sobre a água e charges numa linha próxima às antigas revistas Dum-Dum e Chiclete com Banana, porém menos anárquica e mais panfletária.
Em paralelo, Silvio Ayala produziu desenhos de estilo punk ou skatista para serem publicados em zines do centro do país e um jovem cartunista koostela desenvolveu uma série sobre o pichador Toniolo, obra que depois virou uma publicação. Depois, Koostella partiu para Europa sem voltar.
A poucos metros dali, no Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, aos sábados, o desenhista Daniel HDR ministrava oficinas de quadrinhos no estilo comics norte-americano. Daniel já havia trabalhado em algumas publicações e despontava para o mercado internacional após colaborar com o paraibano Mike Deodato. Tornou-se referência em comics no Rio Grande do Sul. Suas oficinas duravam o dia inteiro e atraíam adolescentes de todo o estado. Entre eles estava João Azeitona, que mais tarde criaria o personagem Porco Pirata.
Do outro lado da Rua dos Andradas, funcionava o Museu do Trabalho, onde diversos artistas mantinham o Clube da Gravura, entre eles Paulinho Chimendes e Maria Tomaselli. Também colabora Fábio Zimbres, editor da revista Animal, publicação mix que revelou vários artistas brasileiros nos anos 1980 e 1990. Entre os colaboradores estava Pedro Alice, que trabalhava com colagem digital e popularizou a gíria “colosso”, termo que havia se tornado conhecido na década anterior pelo programa infantil TV Colosso, da Rede Globo e cujos roteiristas também tinham gaúchos entre seus criadores.
“A poucos metros dali, no Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, aos sábados, o desenhista Daniel HDR ministrava oficinas de quadrinhos no estilo comics norte-americano. Daniel já havia trabalhado em algumas publicações e despontava para o mercado internacional após colaborar com o paraibano Mike Deodato”
Na mesma Rua dos Andradas, o jornal Correio do Povo publicava as charges de Schroeder, então professor de jornalismo da PUCRS e diretor do sindicato dos jornalistas, e o cartunista Tacho. A poucas quadras dali, no Sindicato dos Bancários, Augusto Bier produzia diariamente charges sindicais enviadas por mailing para todo o Rio Grande do Sul. Os temas eram sempre políticos, mas Bier tinha liberdade para criar charges “bagaceiras”, de temática sexual. Também criou o personagem Blau, que ironizava a colonização alemã.
Anos antes, seu colega de sindicato, Iotti, havia criado o personagem Radicci. Em 2001, Iotti já era um cartunista consagrado no jornal Zero Hora, na Avenida Erico Verissimo. Os principais chargistas da Zero Hora eram Marco Aurélio e Sampaulo. Os dotes de desenho e humor de Marco Aurélio eram muito contestados, considerados de baixa qualidade, mas, por ser diretor comercial do jornal e amigo do fundador Maurício Sirotsky, tinha destaque. Já Sampaulo criava o personagem Sofrenildo, sempre prejudicado por algum motivo, raiz do seu humor. Conhecido por beber e desenhar em mesas de bar, era figura popular no Centro e na Cidade Baixa. Infelizmente, Sampaulo faleceu em 1999 e Iotti o substituiu com galhardia naquela virada do século.
Nesse período também despontavam artistas como Uchoa e Gilmar Fraga, que produziam principalmente ilustrações para a Zero Hora. Em paralelo, o jornal Diário Gaúcho tinha como principal chargista o passo-fundense Alexandre Oliveira, criador do personagem Tinga, inspirado no bairro da Restinga. Alexandre havia se mudado para Porto Alegre no fim dos anos 1990 e foi escolhido pelo editor Luiz Adolfo para trabalhar no jornal popular. Ao saber que o maior bairro da cidade era a Restinga, decidiu criar um personagem negro que enfrentava dificuldades, em certa medida semelhante a Sofrenildo.
Enquanto isso, circulavam nos bairros Bonfim, Cidade Baixa e Centro os zines, muitos de viés anarquista. Entre os zineiros estavam Denilson Reis e a galera da Quadrante Sul que produzia seus zines em Alvorada e outras cidades da região metropolitana de Porto Alegre. A cena, porém, tinha pouca representação feminina, algo que só se modificaria anos depois.
No mercado publicitário, Juska colabora com mascotes e no editorial com publicações infantis. Eugênio Neves fazia bonecos de espuma, em tamanho gigante, para supermercados e empresas em geral, além de colaborar para animações de bonecos para anúncios em geral. Uberti, o cartunista publicitário, atuou em agências e desenvolvia o humorístico Graça na Praça. Algumas revistas, como Press e Atenção, publicaram charges e tiras e, na Assembleia Legislativa, alguns deputados, principalmente de esquerda, encomendavam charges aos cartunistas. Em paralelo, existiam algumas publicações infantis, como o Gauchinho, feita por mim — Leandro Dóro — para a Comercial Zaffari, de Passo Fundo, e Esquilinho, da Companhia Zaffari. Ambas tinham tiras, histórias em quadrinhos e ilustrações.

Também havia as aulas de Joaquim da Fonseca, que estimulava novos cartunistas e aquarelistas. Joaquim publicou um livro reunindo a história do humor gráfico gaúcho. A editora L&PM era responsável por divulgar quadrinhos e charges, tendo como estrelas Santiago e Edgar Vasques. Na Cidade Baixa, bairro boêmio por excelência, era comum encontrar na livraria Bamboletras a Santa Ceia de Santiago, aquarela que retrata gaúchos em cena sacra. Edgar, por sua vez, fazia capas para a L&PM e já havia trabalhado como designer da prefeitura de Porto Alegre. Ambos recebiam novos desenhistas nas reuniões da Grafar, avaliando portfólios e dando críticas sobre técnica e humor.
No bairro Bonfim, funcionava o estúdio de animação de Otto Guerra, que trabalhava no longa Woodstock – Sexo, Orégano e Rock’n’Roll, em parceria com Angeli. O roteiro se estendia porque Angeli sempre fazia críticas. Otto buscava contratar novos animadores, mas dependia de leis de incentivo, o que tornava os pagamentos incertos. Ainda assim, mantinha uma equipe coesa. Já haviam passado por seu estúdio Allan Sieber e Adão Iturrusgarai, ambos atuando no eixo Rio-São Paulo. Sieber havia acabado de ganhar o Kikito em Gramado com Deus é Pai, curta que ironizava a relação entre um Jesus adolescente e um Deus velho. Com o prêmio, abriu um estúdio no Rio de Janeiro, prestando serviços inclusive para a Rede Globo. Adão, por sua vez, trabalhava na Folha de S. Paulo, provavelmente já com a personagem Aline, mulher sexualmente livre que vivia com dois maridos.
Outro nome da animação era Lisandro Santos, que fez sucesso com seus curtas, especialmente Cidade Fantasma, primeiro de uma trilogia sobre Porto Alegre. O filme mostrava um jovem passando o verão na cidade e conhecendo sua namorada na Lancheria do Parque. Exibido pela RBS TV, conquistou uma legião de fãs.
Havia ainda a memória da cooperativa de artistas gráficos Cetpa, criada por Brizola nos anos 1960. Entre os remanescentes estava Bendatti, designer da UFRGS.
No interior existiam núcleos de chargistas em Santa Maria, com Máucio, Byrata e Jo e mais esparsos em Passo Fundo, Pelotas e Rio Grande. Na cena do Zine de interior se destacava, em Passo Fundo, Rodrigo Andrade com Punhetão e Ponto TXT e, em Rio Grande, Lorde Lobo com Areia Hostil.
Na escadaria da Borges de Medeiros, Nani conduzia o bar Tutti Giorgi, vendendo carreteiro a R$1,99 e pedindo para os cartunistas frequentarem seu bar. Sua solicitação foi ouvida nos anos seguintes por Rodinério da Rosa, que conduziu os cartunistas para uma nova fase e espaço. Ali, no Tutti, Santiago e Edgar continuariam a receber novos cartunistas e avaliar seus portfólios.
“Santiago dizia que os gaúchos eram “gauleses irredutíveis”, como num cartoon em que retratava o estado como a Gália de Asterix resistindo ao domínio estrangeiro. Muitos questionavam se valia a pena publicar na internet sem remuneração”
No âmbito da internet, começava a migração para a banda larga. A principal charge virtual no RS era a de Augusto Bier, pelo Sindibancários. No centro do país já surgiam projetos de revistas virtuais. Santiago dizia que os gaúchos eram “gauleses irredutíveis”, como num cartoon em que retratava o estado como a Gália de Asterix resistindo ao domínio estrangeiro. Muitos questionavam se valia a pena publicar na internet sem remuneração. Alguns aderiram, outros descobriram que poderiam conquistar clientes. Sem redes sociais ou bons buscadores, a visibilidade dependia de portais. Eu colaborava para o site passofundo.com e para o site da associação de servidores da UFRGS.
Um dos designers desses portais era Diego Medina, conhecido como garoto-propaganda da cerveja Polar e vocalista da banda Video Hits. Seu trabalho autoral aparecia pouco no portal Terra, um dos principais pontos de acesso à internet na época. Após o 11 de setembro de 2001, a publicação de charges se intensificou, e os gaúchos também participaram de portais como charges.com.
Alguns artistas integravam o grupo de e-mails da revista Front, criada pelo gaúcho radicado em São Paulo, Kipper, que estimulava debates teóricos e reunia novos desenhistas e contistas. Já no Rio Grande do Sul, como gauleses irredutíveis, os gaúchos se recusaram a ter grupos de discussão por e-mail — modernidade que chegaria somente nos anos seguintes.
As bancas de revistas ainda eram fortes, como a Banca da República, e havia comic shops no Centro. Materiais eram comprados na Casa do Arquiteto ou em papelarias. Já existiam os primeiros usuários de tablets de mesa, em que o desenho era feito numa prancheta sem tela e aparecia no monitor.
Ziraldo publicava a revista Bundas, estilo Pasquim, com charges e crônicas. Muitos gaúchos enviaram trabalhos para lá. Um deles mandou uma aquarela, mas percebeu que outro artista, que já desenhava com tablet e Photoshop, teve sua arte reproduzida com cores mais vivas. Isso mostrava qual seria o futuro da arte digital.
Os anos vindouros trouxeram mudanças significativas, como a presença de mulheres e pautas identitárias que eram ainda pouco difundidas. O futuro estava começando e o século XXI reservava diversas novidades ao mundo do traço.

Leandro Malosi Dóro, mestre em design estratégico, jornalista, cartunista e escritor. Sabe fazer strogonoff, mas prefere ser convidado para churrasco com tudo liberado.
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