“No sonho, eu experimentei a mesma fascinação que Guilherme de Baskerville sentiu em ‘O Nome da Rosa’, ao acessar a biblioteca proibida daquele depressivo mosteiro beneditino“
Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio
O sonho é uma experiência universal. A humanidade sonha. E aqui me refiro não ao sonhar motor das utopias, mas sim às narrativas que nós produzimos quando caímos nos braços de Morfeu. A verdade é que nosso cérebro tem a capacidade de criar, enquanto dormimos, complexos enredos, demonstrando, dessa forma, que há algo – ou melhor, há muito – que escapa de nossas capacidades conscientes.
Há algumas semanas sonhei que estava em um sebo gigantesco. Inúmeros andares me conduziam a prateleiras imensas abarrotadas de livros. Eu estava sozinho. O paraíso era todo meu. Tratava-se de um sebo de livros raros. Eu subia as escadas, retirava os volumes das estantes, me fascinava com cada título que encontrava. Entre duas delas, eu encontrei uma porta que me levava a um recinto bem menor. Nessa sala havia poucas prateleiras. Os livros que ali estavam eram ainda mais raros. No sonho, eu experimentei a mesma fascinação que Guilherme de Baskerville sentiu em O Nome da Rosa, ao acessar a biblioteca proibida daquele depressivo mosteiro beneditino. Lembro de ter encontrado, por exemplo, uma continuação de Grande Sertão: Veredas, um diário íntimo de Machado de Assis e uma coletânea de ensaios de Kafka. No entanto, o mais espetacular estava colocado em uma mesa bem ao centro da sala: era um livro verde sem título, com uma brochura com detalhes dourados. Eu me aproximei dele, peguei-o nas mãos e tive certeza: aquele era o livro perfeito, o livro que eu havia procurado por toda a minha vida. Embora não houvesse nele título ou autoria, eu soube que naquelas linhas havia um suco perfeito de todas as coisas que eu já havia adorado ler.
No dia seguinte, contei meu sonho à minha psicanalista, que dele fez uma leitura freudiana, ou seja, compreendeu-o como uma expressão de desejos e conflitos inconscientes. A questão era: quais eram esses desejos e conflitos? Bom, não vou aqui discorrer sobre questões subjetivas de minha existência, basta dizer que chegamos à conclusão de que compreender o que estava escrito no livro poderia ser um caminho natural para tratar minhas ânsias mais profundas. Quando, no entanto, comecei a refletir sobre o que deveria estar escrito na tal obra, cheguei à conclusão de que a perfeição em formato de livro só poderia ser composta por uma mescla de todas as leituras que haviam sido impactantes para mim ao longo da minha trajetória de leitor.

Haveria no livro verde a estupefação melancólica que senti quando, na adolescência, tive meu primeiro contato com a obra de Machado de Assis e, em uma noite gelada, debaixo do edredom, li pela primeira vez o “não tive filhos”. O livro também traria algumas ilustrações de Gustave Doré, à semelhança da minha velha edição de O Inferno, da Civilização Brasileira, com tradução de Malba Tahan, edição essa que li na Páscoa de 2007 em São Lourenço do Sul, na casa de um amigo de meu pai. Ele também seria capaz de não me deixar sair de casa, exatamente da mesma forma que eu não saí com meus amigos em um sábado de verão de 2008 porque estava completamente absorvido pelos diálogos de Crime e Castigo. Também não poderia faltar a concisão da forma aliada à transgressão linguística de Primeiras Estórias, obra que li pela primeira vez em 2005 e me fez entender que alguns livros demandavam uma leitura em completo silêncio e concentração, então eu ia para a mesa da sala e degustava cada palavra, li e reli umas três vezes seguidas A Terceira Margem do Rio até ser interrompido por uma visita inesperada da minha prima. Haveria também a necessidade de o livro verde trazer a concisão polissêmica de Drummond, com aquelas mãos, mundos e rosas que eram muito mais do que mãos, mundos e rosas, enquanto eu lia A Rosa do Povo para o vestibular me dei conta de que a mancha de umidade na parede do meu quarto também era poesia que poderia me cortar, me ferir. Claro, também não poderia faltar aquele niilismo esparramado de Tabacaria, com suas frases tatuáveis e sua melancolia portuguesa, eu estava apaixonado por Fernando Pessoa na época mais aguda da insuficiência cardíaca de meu pai, eu ia para a Redenção ler durante as tardes para evitar a sua respiração pesada, sua fala arrastada, sua pouca perspectiva. Além disso, de alguma forma o meu livro perfeito deveria achar uma síntese na fluidez de Lobo Antunes, Saramago e Clarice, as longas tardes fluidas em que eu ainda não era acossado pela responsabilidade de dar incontáveis períodos de aula, com menos tempo livre, A metamorfose caía melhor entre a correção das provas de uma turma e outra do que Explicação dos Pássaros.
Não foi preciso pensar muito para me dar conta de que o livro perfeito era uma utopia sobretudo formal: como transformar em uma única obra uma miríade tão grande de sensações que me haviam sido provocadas por diferenças estéticas que muitas vezes eram antagônicas? Também não havia como pensar em um enredo ideal, já que ele só se perspectiva por meio de sua relação com aspectos formais – ou por acaso Memórias Póstumas de Brás Cubas seria o mesmo livro caso fosse narrado de forma linear?
Levei essa conclusão para a minha psicanalista, que insistiu na hipótese de que eu deveria pelo menos imaginar qual seria a “história” do tal livro. Temendo parecer um paciente muito chato, expliquei que a literatura era muito mais do que um enredo, mas sobretudo também uma questão de estética, e ela pediu então para eu “imaginar” qual era a minha estética. Cheguei à conclusão de que simplesmente ficar pensando neste livro que sonhei é mais satisfatório do que tentar compreender sua forma e conteúdo, pois, afinal de contas, a fruição da literatura se encontra também durante o ato da leitura e não somente em seu desfecho.
Há alguns dias minha mãe resolveu arrumar a despensa de seu apartamento. Na peça ficavam guardadas inúmeras velharias dos mais diversos gêneros. Quando fui visitá-la, ela me mostrou algumas coisas que tinha encontrado e que guardou, na certeza de que eu não gostaria que fossem jogadas fora. Havia duas caixas de meus antigos materiais de escola, coisas do ensino fundamental I, lá do início dos anos 90: folhas, cadernos, trabalhos etc. No fundo de uma das caixas, encontrei uma pasta verde que imediatamente remeteu ao livro que eu havia sonhado. Mas não havia dúvida: não era aquele o objeto do meu sonho, mas sim uma espécie de “sombra” dele. Abri a pasta: dentro dela, inúmeras tentativas de desenhos que fiz em 1993, na chamada “pré-escola”, com a professora Inês. Havia ali tentativas de desenhar pessoas que, pensei, só poderiam ser da minha família ou colegas. As folhas estavam amareladas. Coloquei-as com cuidado novamente dentro da pasta. É claro que eu não as iria jogar fora.
Desde aquele sonho, o livro verde parece estar me acompanhando. Sei que nunca irei lê-lo e muito menos escrevê-lo. No entanto, a cada linha que escrevo tento, de uma forma ou outra, imitá-lo um pouco, pois talvez a escrita seja justamente isso: uma utopia da forma que navega em um mar de experiências individuais.

Cristiano Fretta tem 34 anos, é mestre em Letras pela UFRGS, músico, compositor e professor de Literatura e Língua Portuguesa em escolas privadas de Porto Alegre. É autor das obras Chão de Areia, Tortos Caminhos e A luz que entrava pela janela. Também colabora com as revistas digitais Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo, Passa Palavra e com o jornal Extra Classe.
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