“A partir do início do século XXI a produção de quadrinhos no Brasil atingiu um ponto de profusão que se revela não apenas em quantidade, mas em temáticas diversificadas. Seria válido dizer que existe uma temática ou estilo nacional nos quadrinhos feitos no Brasil em que é possível colocá-los sob o mesmo guarda-chuva como é feito com os comics, os mangás e os fumetti?”
Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução
Foi estipulado que o dia 30 de janeiro é o Dia do Quadrinho Nacional. Tal comemoração é realizada porque foi nesta data, em 1869, que Angelo Agostini publicava As Aventuras de Nhô-Quim ou Impressões de uma Viagem à Corte, na revista Vida Fluminense. A publicação de Agostini é considerada por alguns estudiosos também como uma das primeiras manifestações dos quadrinhos no mundo. O Dia do Quadrinho Nacional foi criado pela AQC (Associação de Quadrinistas e Caricaturistas do Estado de São Paulo) em 1985 como resposta a outra data. Em 1984, a ABL (Academia Brasileira de Letras) e a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) criaram o Dia Nacional dos Quadrinhos. Esta comemoração acontece em 14 de março em alusão à publicação do Suplemento Juvenil, de Adolfo Aizen, no jornal A Nação, em 1934. Foi criada no ano de 1984 em comemoração dos cinquenta anos do Suplemento Juvenil. Esta última, apesar de criada antes, foi menos alardeada e reconhecida.
A diferença entre as duas datas parece ser a de que em março se comemora em solo brasileiro todos os tipos de quadrinhos feitos em qualquer país e em janeiro é comemorada a produção de quadrinhos feita no Brasil. Além disso, no Brasil, passou a se comemorar o Dia do Quadrinho Grátis, em decalque do Comic Book Free Day, dos Estados Unidos. A distribuição gratuita de quadrinhos — que na verdade são adquiridos pelas lojas e distribuídos unitariamente a cada pessoa — acontece no evento Virada Nerd, geralmente no final de novembro, capitaneado pela Devir Editora e que já se alastrou para demais editoras de quadrinhos brasileiras. No ano de 2022 foi a primeira vez que a gigante e monopolizadora do mercado nacional, a Panini Comics, participou da iniciativa.
Sobre as datas de comemoração do quadrinhos em solo brasileiro, o historiador Márcio dos Santos Rodrigues afirma que a cena brasileira de quadrinhos sofre de uma “idolatria das origens”, um sintoma verificado por vários estudiosos da História em outros casos. Esse tipo de idolatria levaria um grupo a adotar determinados indivíduos como pioneiros, de forma a ignorar processos historiográficos. Para Rodrigues, o interessante seria verificar quais as motivações desses grupos que levaram à adoção de tais pessoas como dignos de celebração. O historiador também aponta que o meio dos quadrinhos é obcecado por estes tipos de marcos históricos, tendo em vista também a discussão sobre qual deveria ser o quadrinho que deu início à forma moderna de se produzir a nona arte.
Entretanto, a discussão que gostaria de trazer à baila aqui é a de refletir o que temos de brasileiro, de brasilidade, nessa comemoração dos quadrinhos nacionais. A partir do início do século XXI a produção de quadrinhos no Brasil atingiu um ponto de profusão que se revela não apenas em quantidade, mas em temáticas diversificadas. Seria válido dizer que existe uma temática ou estilo nacional nos quadrinhos feitos no Brasil em que é possível colocá-los sob o mesmo guarda-chuva como é feito com os comics, os mangás e os fumetti?
Uma classificação assim tem a ver com a memória coletiva do que se pensa como quadrinho brasileiro, uma vez que, segundo a semiótica da cultura, memória também é cultura e vice-versa. Além disso, a formação de uma identidade passa por mecanismos ligados à formação da cultura. Lembrando que cultura e identidade, principalmente as nacionais, estão em fluxos contínuos, sempre em construção, afetando uma à outra.

Em um artigo de 2013, o pesquisador de quadrinhos Amaro Xavier Braga Júnior explica que o nacional é relativo a produtos culturais institucionalizados como pertencentes à nação. É assim com a bandeira brasileira, mas também com o samba, o futebol, as novelas, a feijoada e a caipirinha. Benedict Anderson cunhou o termo “comunidades imaginadas” para explicar o que são nações. A existência das nações foge daquilo que é relativo à natureza e só existe dentro de uma mentalidade que estabelece uma fronteira imaginária de onde começa um país e outro, que também imagina o que é próprio ou não a essa circunscrição territorial. Logo, o que é nacional nos quadrinhos nacionais também é algo a ser imaginado.
Além disso, Braga Junior acredita que ainda exista muito pouco deste elemento nacional nos quadrinhos brasileiros e que está mais presente em artistas com carreira solidificada no Brasil do que em iniciantes. Acredito, como Braga Júnior, que embora exista ainda pouco de nacional nos quadrinhos brasileiros, essa temática vem se proliferando na última década, ou seja, mais ou menos dez anos passados desde a publicação de seu artigo. Pelo menos naquilo que tange à brasilidades institucionalizadas como o samba e o futebol. Contudo, a maneira de ser brasileira está bastante relacionada à maneira de ser do quadrinho brasileiro. Acredito que a dificuldade do quadrinho brasileiro trazer mais temas institucionalizados como nacionais esteja ligada à própria conformidade da cultura nacional. Utilizo alguns pressupostos do antropólogo Roberto DaMatta para explicar isso.
DaMatta acredita que a sociedade brasileira se encontra em um espaço imaginário e limiar em que sua cultura se relaciona com dois universos diferentes: aquilo que pertence à casa e aquilo que pertence à rua. Na casa convivem os temas moralizantes e relacionados às instituições como família, igreja e até mesmo à cidadania. Já na rua, elementos ligados ao sexo, à violência, ao lazer. Uma analogia poderia ser feita entre o que é domesticado e o que é selvagem. Assim, encontramos, numa vertente mais estabelecida, quadrinhos brasileiros que são mais domesticados, como os infantis, os fofinhos e os educativos, higienizados e assepticizados. Mas também existem e são celebrados os quadrinhos da rua, eróticos, violentos, de horror, undergrounds, gores, feios, sujos, e mal feitos.
Da mesma forma, encontramos aqueles que ficam no meio do caminho entre a casa e a rua. Talvez esses teriam mais chances de encontrar elementos nacionais, nem tanto em seu conteúdo e temática, mas na forma como se dá seu desenvolvimento e circulação. Referem-se ao “jeitinho brasileiro”, encontrar uma forma de fazer valer uma vantagem para si mesmo. Fazer com que o quadrinho desperte o interesse do público e venda, mas traga algum raciocínio brasileiro, próprio, artístico, nele. Muitas vezes isso precisa se dar numa espécie de gambiarra narrativa e temática, que tenta se valer tanto de elementos daqui de dentro como de lá fora. Tudo isso me faz acreditar que a brasilidade de um quadrinho nacional pouco tem a ver com nacionalismo ou nacionalidade.
Além disso, temos os famigerados super-heróis brasileiros que são volta e meia associados ao nacionalismo e ao extremismo político. Como já expliquei em outras ocasiões, os super-heróis são produtos de um contexto histórico e geográfico de criação. Apenas uma desconstrução bem feita de suas características como gênero de quadrinhos pode funcionar fora de tal lógica. Para DaMatta, a forma como o brasileiro enxerga os heróis, oscila em três categorias: o malandro, que consegue o máximo com um mínimo de esforço, muitas vezes à margem da lei e daquilo tido como ético e moral; o santo, que lida com temas sobrenaturais, que renuncia ao mundo material; e o caxias, o trabalhador, que se sacrifica, mas também não aproveita a vida e além disso obriga aos outros a trabalhar. Todas essas características fogem de inúmeras apresentações e definições de super-heróis brasileiros, que muitas vezes são calcados no modelo estadunidense do que deve ser o (super)heroísmo. Isso, talvez, tenha a ver com a síndrome do vira-latas brasileira e, claro, dessa síndrome dentro do meio de quadrinhos brasileiro. Não me aprofundarei no viralatismo nacional e do quadrinho brasileiro, mas isso pode vir a ser pauta para uma próxima reflexão.
Vale ainda falar do carnaval nos quadrinhos, não como temática, mas como carnavalização. Tal ferramenta cultural, narrativa e identitária está extremamente presente na produção brasileira de quadrinhos e é possível que seja sua principal característica. O termo carnavalização foi criado pelo linguista Mikhail Bakhtin para explicar um momento — o Carnaval — em que as regras são suspensas e tudo é possível, as lógicas se invertem. Para ele, é durante essa época do ano em que acontece o único momento que as classes inferiores podem zombar das elites, ou ainda, atuar em paridade com elas, como se fossem uma massa única. Também enquanto o Carnaval não se acaba que estão liberadas todas as fantasias para serem realizadas: sejam elas sexuais ou aquelas que são vestidas para encarnar um personagem. Homens viram mulheres e pobres tornam-se ricos. As hierarquias e dualidades se apagam durante o Carnaval.
A carnavalização nos quadrinhos brasileiros é uma marca que vem desde os pioneiros, como Angelo Agostini, cujo trabalho era publicado em revistas que traziam muitas caricaturas que zombavam da vida na corte brasileira. Os quadrinhos brasileiros passaram por períodos recentes de publicações notórias em que se carnavaliza o mundo dos políticos, famosos, ricos e poderosos, como em O Pasquim, Chiclete com Banana, Circo e em Bundas. A subversão do humor dos quadrinhos brasileiros tem essa qualidade carnavalesca de libertação, desconstrução, e abertura de passagem para que outras realidades se assentem na sociedade.
Mesmo as revistas da Turma da Mônica, nosso representante mais mainstream, mais atrelado àquilo que a memória coletiva dos brasileiros associa ao quadrinho nacional, traz em suas páginas elementos carnavalizados como as piadas que faz com elementos da cultura pop estadunidense. Porém, muitas vezes, os estúdios MSP não permitem e algumas vezes perseguem brincadeiras com as criações relacionadas a sua marca. Essa “faca de dois gumes” é outro sinal de que a dicotomia entre o que é da casa e o que é da rua fica difusa na mentalidade e na cultura brasileira.
Para finalizar preciso dizer que, assim como a sociedade brasileira, a produção de quadrinhos nacional em suas complexidades, não pode ser entendida como algo único, homogêneo. O interessante na brasilidade — e não na nacionalidade — é essa possibilidade de navegar entre identidades que parecem duais e estanques, de se posicionar em entrelugar, onde com um certo jeitinho malandro as coisas vão se ajustando (ou pelo menos vai-se tentando na gambiarra). O curioso é que também não existe fórmula de sucesso nos quadrinhos nacionais, pelo menos não na forma, na temática ou no estilo com que são produzidos. Essa ambiguidade e essa extrema dificuldade em emplacar a leitura de quadrinhos feitos aqui, ainda por cima para pessoas que vivem aqui, é ao mesmo tempo encantadora, frustrante, desafiadora e desoladora. Da mesma forma como é ser brasileiro no Brasil.
Referências
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre as origens e expansão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1999.
BRAGA JUNIOR, Amaro Xavier. O que tem de nacional no quadrinho brasileiro? In: Revista Espaço Acadêmico, n. 142, v. 12, Maringá/PR, março de 2013. Disponível aqui.
DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
RODRIGUES, Márcio dos Santos. In: CALLARI, Victor, RODRIGUES, Márcio dos Santos. História e quadrinhos: contribuições ao ensino e à pesquisa. Belo Horizonte, MG: Letramento, 2021.


Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges
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