“Eu não conseguia me desvincular do espaço que Camélia ocupara até então em minha casa, do afeto que lhe dediquei”
Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução
Certa vez, cultivei uma muda que disseram ser canela. O tempo passou e a planta não convenceu muito. O vaso onde estava acomodada era facilmente envolvido pela mão. Recebia sol e estímulo com comentários refletivos durante a rega. Nada. Os ramos continuavam esquálidos sem qualquer evidência latente de que, ali, residia a potência de uma especiaria. Batizei a mudinha de Camélia (perdi a oportunidade de chamá-la de Canélia).
O fato é que a passividade deu lugar ao inconformismo. Por que ela não assumia o tamanho que eu esperava e que eu acreditava que a planta deveria ter? Na época, descobri um aplicativo que, por meio de uma foto, identificava o vegetal. Imagem anexada no app. A conclusão foi desoladora em um primeiro momento para se revelar conflitante mais tarde. O seu nome era morugem [Stellaria media] e tinha propriedades medicinais. Ou seja, Camélia era considerada uma erva daninha.
Tanto cuidado, tanta expectativa, tanto esforço. E agora? Apenas alguém entranhada em um sistema capitalista delegaria valor e hierarquia à natureza. Deprimente, Priscila. De qualquer maneira, eu não conseguia me desvincular do espaço que Camélia ocupara até então em minha casa, do afeto que lhe dediquei. Eu precisava aprender a lidar com o pequeno, com o frágil, com o rasteiro; enxergar esses estágios não apenas como meio, mas também como a síntese do que se propõem a ser: simples, ordinário e dotado de relevância.
Eu enxerguei na Camélia uma palavra. Qualquer palavra que eu desejasse grande. Ramos de frases. Uma árvore inteira. Um livro. É penoso compreender que, muitas vezes, a escrita que almejo (ou os movimentos que danço), no final das contas, acaba se revelando vegetação rasteira, e nem por isso precisa ser descartada. Exercício difícil de assimilar e de se colocar em prática, porém, necessário para não me paralisar.

Nem sempre cuido devidamente das Camélias que nascem rasteiras nas páginas em branco. Eu as fantasio, exijo frutos improváveis, quando, na verdade, elas podem me oferecer apenas o verde de suas minúsculas folhas – o que, em alguns momentos, pode representar muito subjetivamente.
Camélia foi uma palavra que eu pronunciei com os olhos.
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No Aterro da Baía Sul, em Florianópolis, desde 2014, um aglomerado de vegetação rasteira foi cercado com “estacas de madeira, fita sinalizadora e uma placa com a inscrição Pesquisa da Universidade” — uma forma de legitimar a intervenção e tentar impedir a “interferência dos mecanismos oficiais de jardinagem pública e de outras pessoas”. *
Este cenário fez parte da intervenção “Proteções de daninhas” (2014), do coletivo de artistas-pesquisadores do Observatório Móvel (OM), do Centro de Artes (Ceart), da Universidade do Estado de Santa Catarina. Eles promovem algumas ações em Florianópolis (SC) e em outros municípios, investigando os usos dos espaços públicos. Isso envolve encontros de estudo, oficinas, produção gráfica e audiovisual, jardinagem, entre outras abordagens.
A intenção do OM era a de permitir a resselvagização da área, que, conforme o grupo explica em seu site, consiste em:
deixar trabalhar o remanejamento imprevisível de forças que se segue ao abandono. É uma experiência que identifica-se com o desaprender ou o desescolarizar no que se refere à necessidade de transformação de saberes, culturas ou crenças sedimentadas que padronizam nossas relações sociais.
“Resselvagizar”. “Deixar trabalhar o imprevisível de forças que se segue ao abandono”. “Desaprender crenças sedimentadas que padronizam nossas relações”. E se a escrita fosse mais selvagem? É possível se permitir escrever, ler ou consumir literatura a partir deste ímpeto em percorrer terrenos incultos sem a “padronização dos saberes” e “crenças sedimentadas”?
Me desfiz de muitos vasos de plantas nos últimos anos. Não resistiram à escassez de luz natural do meu apartamento. Restaram três de tantas. É uma verdadeira batalha mantê-las. Exigem esforço, mudanças rotativas de local. Eu sempre quase desisto, mas acabo investindo um resto de mim. Não sei se as plantas têm a mesma vontade. A essas não dei nome. Que sejam selvagens e que eu aprenda algo sobre apenas ser.
* O coletivo informou que a intervenção neste local não existe mais. Os integrantes retomaram a proposta algumas vezes, em uma delas, alguém ateou fogo no cercado de daninhas.


Priscila Ferraz Pasko (1983 – Porto Alegre) é escritora, jornalista freelancer na área cultural e graduanda em História da Arte (Ufrgs) . É autora do livro de contos “Solo rachado por dentro” (Figura de Linguagem, prelo), “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019) – Prêmio Açorianos 2020 na categoria conto. Também integra a coletânea “Novas contistas da literatura brasileira” (Zouk, 2018). Paralelamente, Priscila se dedica à dança contemporânea e a experimentos em videodança. Se interessa ainda por artes visuais, pelo processo criativo/vivência de artistas mulheres e sonhos. Divide o teto com os seus dois gatos, a Pemba e o Arruda.
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