Guilherme Smee: Vingar e Punir: Gostoso Demais?

“Ironicamente, o vigilantismo presente na mitologia dos super-heróis e esse estigma de observadores passivos do mundo também se relaciona com o tipo de masculinidade que é veiculada nas revistas em quadrinhos de super-heróis”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução

Na obra em que define as narrativas dos super-heróis, Peter Coogan estipula que os super-vilões são seres pró-ativos. Enquanto eles planejam e executam os seus planos malignos com diligência, ao super-herói só cabe reagir a esses planos e consertar o que quer que os vilões tenham feito. Em seu papel de força do bem e alavanca para mudar o mundo, os super-heróis não fazem muito para que essa mudança aconteça. Eles servem mais para contenção de desgraças e de curativos para as feridas do mundo. Basicamente, eles remediam mais do que previnem. Vingar, punir, vigiar, justiçar é, então, o modus operandi dos super-heróis.

Embora não sigam exatamente o que seu nome diz, os Vingadores são um grupo em que a vingança, uma ação reativa ao mal que nos é feito, está servindo como força motriz. O nome dos Vingadores vem da tradução de Avengers. Enquanto em inglês existe uma diferença entre os termos “avenge” e “revenge”, em que a primeira significa uma retribuição e o conserto de um mal engendrado, a segunda tem o sentido de satisfação, ao provocar uma espécie de vingança em que outro mal é produzido. Entretanto, em português, “avenge” e “revenge” são traduzidos como “vingança”.

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Outro caso de significado que se perde na tradução é o quadrinho Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons. Numa tradução ao pé da letra, poderia ser utilizada a palavra Vigilantes, levando à relação com a frase de Juvenal, “Quem vigia os vigilantes?”. Mas na trama da revista em quadrinhos também encontramos um sentido relacionado com “watch”, relógio, que envolve o Dr, Manhattan e o Relógio do Juízo Final. Contudo, se formos mais a fundo nos muitos significados da palavra “watch”, ela também significa assistir, observar, em uma acepção passiva da palavra. Ela tem a ver com as pessoas que assistiram ao assassinato de Kitty Genovese, morta com 27 facadas em uma noite em Nova York enquanto sua vizinhança não reagiu. Foi a partir deste episódio que surgiu Rorschach, um dos super-heróis de Watchmen. O nome do quadrinho seria, então, também uma crítica feita pelos seus autores aos super-heróis, meros observadores passivos do mundo. Isso muda quando um deles, Ozymandias, resolve tomar uma atitude para impedir o fim do mundo.

Ironicamente, o vigilantismo presente na mitologia dos super-heróis e esse estigma de observadores passivos do mundo também se relaciona com o tipo de masculinidade que é veiculada nas revistas em quadrinhos de super-heróis. Trata-se de uma masculinidade vigilante, que precisa se preocupar com as fronteiras dos sentidos que suscita, principalmente no aspecto visual dos super-heróis, com seus músculos anabolizados e bem definidos, que atuam como parte integral da sua narrativa. Ao passo que muitas vezes os super-vilões apresentam visualmente uma masculinidade longe da ideal: são carecas, encurvados, gordos, narigudos, usam óculos. Seus defeitos, diferentes dos dos super-heróis, são impressos em seus corpos, como marca da diferença e daquilo que representa a maldade nesse universo. Assim, a masculinidade dos super-heróis é vigilante ao mesmo tempo em que todas as masculinidades o são, precisam estar sempre atentas para não performar atos distantes do que é considerado relativo ao homem, com pena de serem censurados e desabonados por outros homens.

Outra obra de Alan Moore, desta vez com David Lloyd, também explora o aspecto do vigilantismo e da vingança. V de Vingança tem seu nome original como V for Vendetta. Embora Vingança e Vendetta começam com V em português, elas não necessariamente significam a mesma coisa. Uma vendetta, palavra que vem do siciliano, significa uma rixa de sangue entre famílias e clãs. Trata-se de uma guerra privada que apresenta um ciclo de provocações entre os dois lados da contenda. É uma espécie de violência retaliatória. Nos super-heróis existe outro tipo de violência, a violência redentiva, onde atos radicais servem para estabelecer a ordem e trazer alívio para a população afetada. Nos quadrinhos de super-heróis existe até uma personagem chamada Vendetta. Ela é a versão feminina do Justiceiro do ano de 2099.

Dessa forma, se vendetta estava associada à vingança para os leitores de quadrinhos, ela passa a ser associada também à justiça por causa do Justiceiro. Este personagem, que muitas vezes é considerado como herói por muitos, também seu codinome tem uma corruptela em sua tradução. Originalmente, Frank Castle é Punisher, o Punidor, e não o Justiceiro. Portanto, através do seu codinome como estabelecido no Brasil punição — geralmente associada a brutais assassinatos — e justiça são confundidos. Passa a se pensar que como se para obter justiça alguém precisa ser punido, ou ainda, assassinado.

Essa confusão de nome se torna uma questão tão ou ainda mais complicada do que a utilização da caveira do Justiceiro pelos policiais envolvidos com o movimento Blue Lives Matter em oposição ao movimento estadunidense Black Lives Matter. Essa utilização levou a Marvel a repensar o Justiceiro tornando-o ainda mais associado com assassinatos e mudando o seu símbolo. A Panini Comics Brasil poderia ter aproveitado o ensejo e mudado seu nome para algo mais distante da noção de justiça e mais perto da noção de punição.

Mas a confusão entre justiça e punição não existe apenas nos quadrinhos de super-heróis ou na tradução do codinome do anti-herói Justiceiro. A punição é uma paixão contemporânea, como atesta Didier Fassin em seu livro. No Brasil temos como exemplo a Operação Lava Jato, em que a punição tomou maior proeminência que a justiça, levando a julgamentos exagerados em direção ao punitivismo e que acabaram anulados posteriormente. Fassin acredita que a intolerância seletiva da sociedade se alia ao populismo penal dos políticos, resultando em um punitivismo populista, que apela para os anseios mais primários da sociedade.

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Didier Fassin afirma que a confusão e o reconhecimento de que justiça, vingança e punição andam juntas vem das estruturas que ligam uma pena infligida por um certo motivo com o desejo de que a outra pessoa fique ciente desse motivo. Ou seja, os três atos seriam processos reativos, como a ação dos super-heróis.

Fantin chama a atenção para o fenômeno batizado de vigilantismo e que tem a ver com aquilo que o Justiceiro e o Rorschach fazem, mas também está associado a movimentos como os supremacistas brancos da Ku Klux Klan, entre outros movimentos em que se busca “fazer justiça com as próprias mão”. Esses anti-heróis e esses movimentos têm em comum a ideia de que as instituições oficiais de ordem e de segurança não são capazes de dar conta de suas demandas. Os super-heróis, mesmo associados com a lei e a ordem, mantendo relações ambíguas com a polícia, também seguem esse raciocínio.

A palavra punir vem do latim e está relacionada a castigo e também à pena, que significava reparação. Mais tarde, no latim tardio, a pena vai significar também tormento e sofrimento. Nesse sentido, o sofrimento se tornou algo valorizado na nossa sociedade, a ponto de ir também em direção ao sentido de virtude e não de algo a ser evitado. Essa acepção tem a ver com a doutrina cristã em que Jesus Cristo sofreu para redimir a humanidade de seus pecados, por isso o sofrimento se torna algo altruísta, belo, salvador. Um bom exemplo é o uso da expressão “resolveu pegar alguém para Cristo”.

É comum também associar e se referir a justiça divina com castigo, quando, ao contrário, Jesus Cristo foi um homem que sempre pregou o perdão como forma de tratar as injúrias que recebemos dos outros. Enquanto o povo do Antigo Testamento era regido pela Lei de Talião, de olho por olho, dente por dente, Cristo pedia que se oferecesse a outra face àqueles que nos golpearam. Assim, existem diversas formas de se lidar com a penalidade e com o prejuízo causado às vítimas, de forma justa e que não seja a punição, a vingança, a vendetta, o vigilantismo e o justiçar.

No livro O Tempo das Vítimas, Caroline Eliacheff e Daniel Soulez Lariviere trazem a conhecimento que a vitimologia (o estudo e investigação das vítimas) apresenta três recursos para aqueles que são acusados de lesa: restauração, reparação ou retribuição. A restauração se baseia na mediação, inspirada em povos originários da América do Norte, África e Nova Zelândia, onde culpado e vítima chegam a um consenso. A reparação vem da doutrina cristã do perdão, num ato nobre em que a pessoa é desobrigada de sua pena e salva de sua culpa. Já a retribuição vem da noção de uma compensação, onde uma pena infligida pelo Estado deveria satisfazer à vítima.

Poucas vezes nos quadrinhos de super-heróis são apresentadas a restauração ou a reparação. As narrativas super-heróicas se baseiam na dualidade que vem dos filósofos gregos Sócrates, Platão e Aristóteles, em que separavam as coisas das ideias, o material do espiritual e, depois, da doutrina cristã baseada no zoroastrismo e no maniqueísmo, que separava o bem do mal. Em poucos quadrinhos ou outras produções culturais os super-heróis são pró-ativos. Uma honrosa exceção é a revista dos super-heróis juvenis Os Campeões, liderados pela Miss Marvel Kamala Khan, em que estes personagens se propõem mudar o mundo cuidando de um problema por vez. Ainda assim, atualmente a equipe amarga um limbo editorial e não é publicada desde dezembro de 2021. Essa é mais uma prova que, sendo através de Vingadores, de Justiceiros, de Watchmen ou de Vs, a punição é certamente uma paixão contemporânea e que, para a grande maioria da população mundial, infelizmente, vingar e punir é gostoso demais!

Para saber mais:
ELIACHEFF, Caroline, LARIVIÈRE, Daniel Soulez. O tempo das vítimas. São Paulo: Editora UNIFESP, 2012.
FASSIN, Didier. Punir: uma paixão contemporânea. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2021.

Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges

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