“De maneira lúdica e divertida, os quadrinhos de ‘Nos Olhos de Quem Vê’ não são contados apenas da maneira tradicional, mas também se utilizando de efeitos de infográficos”
Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução
Em 2022, Helô D’Angelo lançou o quadrinho Nos Olhos de Quem Vê, pela editora HarperCollins Brasil. O quadrinho, que saiu em formato livro e em capa dura, é um misto de reportagem e autobiografia falando sobre as dificuldades que Helô passou ao tentar se encaixar nos padrões de beleza exigidos principalmente para as mulheres que vivem no mundo contemporâneo. Através de capítulos muito bem construídos sobre diversos assuntos que tangem ao corpo feminino, Helô vai desmistificando comportamentos sociais que exigem uma padronização do corpo da mulher. Dessa forma, Helô demonstra neste quadrinho que beleza é sentir-se bem consigo mesmo e que os defeitos estão, como diz o título, “nos olhos de quem vê”.
De capítulo em capítulo, cada um dedicado a um tema da beleza corporal, Helô vai investindo em contar sua história (e da relação com sua mãe e com a beleza ao mesmo tempo), lidando com o padrão de beleza exigido para as mulheres. De maneira lúdica e divertida, os quadrinhos de Nos Olhos de Quem Vê não são contados apenas da maneira tradicional, mas também se utilizando de efeitos de infográficos. Por isso Helô demonstra na HQ também toda sua verve jornalística. O livro é um tratado biográfico de quem sentiu na pele — literalmente — os terrores impostos às mulheres na ditadura contemporânea da beleza.
Em um livro que foi muito popular nos anos 1990 chamado O Mito da Beleza, Naomi Wolf afirma que a ditadura da beleza feminina é uma forma de controlar e domesticar as mulheres e que cada período histórico julga desejável um tipo determinado de beleza. Ela ainda acrescenta que “o mito da beleza de fato sempre determina o comportamento, não a aparência” (WOLF, 2021, p. 31). Ou seja, Naomi atesta com teoria o que Helô e sua mãe viveram na prática: dietas para emagrecer, controle estético dos pelos corporais, os cabelos que precisam seguir a moda ou ainda, também serem controlados, os problemas cutâneos que exigem intervenções radicais no corpo, entre outros.
Por sua vez, como consequência da “guerra dos sexos”, um eufemismo para o afã de controle dos homens, Pierre Bourdieu (2019), em seu livro A Dominação Masculina, coloca que os homens geralmente se mostram insatisfeitos com partes de seus corpos que julgam “pequenos demais”, já as mulheres preocupam-se com regiões corpóreas que parecem “demasiado grandes”. Helô viveu essa preocupação com o tamanho do seu corpo, seja no que concerne ao peso corporal em geral, seja, em particular relacionado com o tamanho dos seios.

Em outro celebrado livro sobre a condição feminina, chamado A Mística Feminina, escrito nos anos 1950 por Betty Friedan, a autora afirma que a mulher só poderia ser heroína, se não parasse de ter filhos. Naomi Wolf atualizou essa concepção para a atualidade dizendo que para a mulher se tornar uma heroína aos olhos da sociedade contemporânea, ela precisava não parar de ser linda.
Na apresentação da nova edição de O Mito da Beleza, Naomi Wolf fala que acabou constatando nos anos que se passaram depois da publicação do seu livro nos anos 1990, que a ditadura da beleza se expandiu dos corpos femininos para os masculinos. Ela acredita que a subcultura gay foi a grande responsável por essa mudança, já que nessa subcultura os corpos dos homens gays precisam ser padronizados a partir de determinados tipos de beleza para possuírem capital sexual, da mesma forma que os corpos das mulheres.
Revistas como Men ‘s Health, que exigem que os homens tenham barrigas tanquinho e corpos de super-heróis, eram impensadas nos anos 1990 quando do lançamento do livro de Wolf. A autora adiciona que “como os homens têm um condicionamento ainda maior para se isolarem de seu corpo, e para competir em níveis de excesso desumano, seria concebível que a versão masculina [do mito da beleza] possa prejudicar os homens ainda mais do que a versão feminina prejudicou as mulheres” (WOLF, 2021, p. 414).
Dessa forma, o feitiço vira contra o feiticeiro. Helô, sua mãe, e praticamente todas as mulheres envolvidas na cultura ocidental dos últimos anos sofreram com a ditadura da beleza apoiada no mito da beleza feminina. Tudo isso em função da dominação masculina que busca controlar e domesticar as mulheres para que sirvam aos prazeres e à disposição de seus homens, do patriarcado e do capitalismo, que geralmente estão envolvidos nos mesmos objetivos.
Agora, parece que o mundo masculino também está se dobrando aos desmandos do patriarcado e do capitalismo de forma que os homens também se encontram em uma ditadura da beleza, desconfortáveis com seus corpos e estilos de vida, fazendo diversos procedimentos para capitalizar sexualmente: cirurgias plásticas invasivas, remédios pesados para entrar em forma e manter a disposição sexual, procedimentos capilares e depilação a laser, branqueamentos dentários… Tudo isso menos tratamentos psicológicos que confiram aos seres humanos o bem-estar mental que os desmandos e as demandas do capitalismo provoca neles. Nos Olhos de Quem Vê, de Helô D’Angelo, revela a hipocrisia da sociedade capitalista contemporânea, através de um relato pessoal e intimista. Fala sobre a busca de agradar um punhado de pessoas que veem defeito em tudo que fazemos e somos, apenas para se manterem em dia com as manipulações que o mercado nos impõe. O trabalho de Helô corrobora a teoria do biopoder de Michel Foucault, em que os corpos são manipulados e trabalhados para seguir os interesses dos mais poderosos. Helô traz uma leitura crítica sobre o que estamos fazendo com nossos corpos no momento atual e como vivermos mais tranquilos com aquilo que a sociedade julga como imperfeições corporais. Afinal, tanto a beleza como aquilo que não é belo, vem exclusivamente dos olhos de quem vê.


Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges
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