Guilherme Smee: A Gibisfera: oposição entre alta e baixa cultura nos quadrinhos feitos no Brasil

“Na teoria da Semiótica da cultura, do russo Iuri Lotman, é na periferia onde se encontra a criatividade, onde as trocas são mais frequentes, o local onde os sentidos mudam a todo tempo”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução

Já percebeu como no Brasil, quadrinhos muito parecidos são aplaudidos e reverenciados pela crítica especializada, enquanto outros, podem até ser sucesso de público, mas não chegam a ser comentados de nenhuma maneira pelas pessoas que direcionam as leituras e o consumo de quadrinhos no Brasil de maneira crítica? Eu já notei um padrão. E aqui apresento a minha teoria, ou hipótese de que isso acontece porque existe uma separação entre a alta e baixa cultura nos quadrinhos feitos no Brasil. Continue comigo que vou explicar. 

A crítica especializada brasileira, e aqui se exclui aqueles que se nomeiam como youtubers ou influencers, tem olhos para um tipo de quadrinho específico, que é um consenso entre os mesmos. São quadrinhos com visual de independentes, mas que também são editados por editoras grandes, até mesmo gigantes; obras quase undergrounds, mas que não chegam a tanto. Geralmente usam de preto e branco ou pouca cor em sua estética. Os temas geralmente são políticos, ou seja, não são puro entretenimento. A estética desses quadrinhos geralmente é experimental em algum nível, seja na narrativa gráfica dos quadrinhos, seja no estilo de desenho, dificilmente a arte nesses quadrinhos é realista.

Do outro lado do ringue, temos os “malditos” quadrinhos de super-heróis, os mangás, os quadrinhos infantis, que tem grande apelo popular, entre outros quadrinhos que conversam com esse tipo de produção e estética, mas que são ignorados ao largo pela crítica especializada. A grande maioria desses quadrinhos guardam relações com a cultura pop, a cultura massificada, aquela que chega mais fácil nas pessoas e não depende de grande reflexão para ser entendida ou consumida periodicamente. Contudo, ao ignorar esse lado da balança cultural do quadrinhos, a crítica também ignora a formação de leitores que se dá através do fomento ao acesso e consumo deste tipo de material. Poucas pessoas teriam condições de acesso a quadrinhos densos, grandes e caros como um Angola Janga ou as obras de Marcello Quintanilha, por mais premiados e sensacionais que sejam.

Existe, portanto, uma dicotomia na cultura dos quadrinhos pelos olhos dos “especialistas” que direcionam a cena e o mercado de quadrinhos no Brasil; uma alta cultura, que deve ser valorizada, que merece ser falada e reverberada, que traz vistosidade para os catálogos das editoras, que conquistam e arrebanham todos os prêmios do mercado; outra cultura, a baixa, que são descartáveis tanto em sua versão física como no conteúdo que disseminam, que conversam com  os estilos “importados” de mangás, super-heróis e infantis, mas que nunca ganham atenção da crítica ou prêmios, num circuito que se retroalimenta. Pois críticos que falam da baixa cultura não são valorizados e, portanto, acabam persuadidos a falaram apenas de materiais de alto valor simbólico na gibisfera.

Falando em gibisfera, a esfera dos quadrinhos guarda semelhança com a teoria da semiosfera, da Semiótica da Cultura. Nela, temos uma esfera em que determinados assuntos pertencem ao centro dessa esfera, no caso deste assunto aqui, a alta cultura, onde estão duros e condensados sentidos mais difíceis de serem mudados, onde o acesso a esse núcleo decisório é mais difícil para aqueles que estão na periferia dessa cultura, e portanto, dessa gibisfera. Na teoria da Semiótica da cultura, do russo Iuri Lotman, é na periferia onde se encontra a criatividade, onde as trocas são mais frequentes, o local onde os sentidos mudam a todo tempo. Exponho isso, nos termos da ótica da crítica especializada, porque se formos pensar em termos de produção, criação, circulação e vendas, teríamos uma dinâmica diferente, talvez até mesmo inversa. Tudo isso faz parte da cultura, que é, segundo Lotman, feita de trocas entre o que é central e o que é periférico, e que se dá de forma assimétrica.

Contudo, na gibisfera da crítica especializada essas trocas são mais raras, os conceitos do que é válido e digno de reconhecimento é mais estanque e mais nuclearizado. Ao mesmo tempo, críticos originários de jornais, revistas, sites e acadêmicos possuem um valor simbólico e cultural mais respeitável e, portanto da alta cultura, que youtubers e outros tipos de influencers das plataformas digitais. Muito raros são aqueles críticos que circulam pelos dois tipos de mídias e, quando isso acontece, são geradas aquilo que Lotman nomeou de traduções semióticas. Acontecimentos que desestabilizam as lógicas da cultura e da semiosfera por um determinado período de tempo e provocam uma mudança em alguns sentidos centrais e periféricos da semiosfera e, neste caso, da gibisfera.

A oposição entre alta cultura e baixa cultura é um conceito da Escola de Frankfurt, capitaneada pelos críticos acadêmicos Theodor Adorno e Max Horkheimer,  que postulavam que tudo que era reproduzido em massa pertencia à indústria cultural e, portanto, à baixa cultura. Walter Benjamin dizia que tudo aquilo que era muito reproduzido perdia sua aura. Assim, a TV,  o rádio, o jazz, as revistas e os quadrinhos eram parte da baixa cultura enquanto que teatro, ópera, música clássica, artes plásticas eram parte da alta cultura. Anos mais tarde essa crítica à cultura de massa feita pela Escola de Frankfurt foi um elitismo cultural, porque somente aquilo que era de acesso de poucos era legitimado como válido pela Escola de Frankfurt. Na gibisfera, os quadrinhos mais exaltados e mais premiados, em grande medida, também são os mais elitizados. Não pelos seus temas, mas pela dificuldade de acesso à interpretação do conteúdo e de leitura ou melhor, de consumo.

Enquanto na oposição entre centro e periferia da cultura existam as fronteiras, que são porosas, mas deixam passar determinados sentidos entre os dois pólos de concentração que modificam o que é nuclear e o que é distante, na gibisfera temos o papel do gatekeeper. Este é um conceito que vem da teoria da comunicação e que significa, numa tradução literal “o guardião do portão”, que na comunicação são as pessoas-chaves e os veículos que peneiram o grosso da produção da cultura e “permitem” que o grande público tenha conhecimento e acesso a elas. Os gatekeepers também podem barrar tudo aquilo que não é do seu interesse deixar passar para o público em geral, por isso, de certa forma são responsáveis pelo sucesso ou fracasso de um produto cultural, ou de um quadrinho, como no caso da gibisfera.

Segundo a teoria do gatekeeping, de Pamela Shoemaker e Tim Vos, essas figuras não apenas escolhem o que deve ser aplaudido pelo público, mas também por que devem ser acolhidos e adquiridos por ele. É um processo semelhante à curadoria, porque dentre milhares de opções, o gatekeeper seleciona uma delas que deve ser a ideal para uma determinada situação, um dado público e um contexto específico, no caso, aquele em que esse profissional atua. São os gatekeepers que processam para a audiência o funcionamento do mundo, neste caso, o crivo dos especialistas da gibisfera, que demonstra para o público como o mundo dos quadrinhos funciona, seja ele o mercado ou a cena. 

Os gatekeepers da gibisfera projetam “mapas mentais” para as pessoas de fora dela, desenvolvendo culturalmente uma persuasão praticamente tão eficaz como a da publicidade. Por isso que, muitas vezes, muitos influencers se tornam, também, editores, escoando seus produtos através de seus portões de validação cultural. Mais que isso, não podemos ser inocentes a ponto de acreditar que os gatekeepers apenas bloqueiam ou permitem a passagem de conteúdos, sentidos ou obras para o grande público, mas também são responsáveis por modificar produtos de forma que essas obras fiquem mais atraentes para o consumidor final. Nesse sentido, podemos verificar a famigerada “gourmetização” dos quadrinhos, que se tornam elitizados ao emprestarem valor capital elevado a obras nem tanto celebradas, mas que ganham tratamento de luxo como ítens indispensáveis. 

Além disso, a forma como esses profissionais atuam, envolve processos de transformação de um produto antigo em algo que deve ser consumido por ser algo essencial e clássico; de serem os portadores da novidade de forma a atrair os early birds, ou seja, aqueles consumidores que querem ser os primeiros a ter e experimentar coisas novas que possam indicar a outros; se utilizam de um planejamento de quando anunciar determinadas obras em momentos propícios para sua venda, como, por exemplo, no lançamento de obra audiovisual relacionada com um quadrinho; de repetir e insistir num quadrinho conforme lhe convir e também de bloquear ou boicotar determinados artigos por alegações diversas. Contudo, em nenhum momento o público exige do gatekeeper de quadrinhos um conhecimento amplo e vasto da gibisfera ou que esteja ciente de todas as obras lançadas durante um período de tempo, o que diz muito sobre esses profissionais e sobre o público que modelam. A conclusão que se chega é que para se tornar um gatekeeper da gibisfera de quadrinhos brasileira, não é necessário conhecimento, mas influência e, principalmente, uma rede de influências. Também chegamos à conclusão que, em alguma medida, todos nós, envolvidos com quadrinhos, somos gatekeepers, pois modificamos o mundo a partir do uso de nossa memória sobre o mundo e através das escolhas que fazemos de mencionar ou não mencionar determinados assuntos. 

A questão da influência tem a ver com o início deste texto, da separação entre uma alta e uma baixa cultura dos quadrinhos brasileiros feita pelos profissionais gatekeepers da cena e do mercado. Como o público não exige de seu influenciador que tenha um conhecimento global sobre o assunto que coloca em pauta, o gatekeeper sente-se livre para manipular o gosto do público leitor ao seu bel prazer. Algumas vezes isso é feito de forma sutil, outras, de modo declarado a ponto que seu próprio público consegue ter ferramentas para perceber esse direcionamento. As altercações na esfera das redes sociais se dão exatamente pela falta de compreensão da alteridade de um gatekeeper com outro, provocando as já citadas traduções na gibisfera. Quando não há trocas ou pesquisas entre os diferentes centros de influência da gibisfera, seus centros, seus núcleos, um deles acaba enviado a um espaço periférico nessa cultura. “Conforme o gatekeeper se baseia em um grupo restrito de fontes, ele pode ser isolado e se tornar mais suscetível ao pensamento de grupo”, dizem Shoemaker e Vos. Assim, o gatekeeper se torna mais influenciado pelas demandas do seu público do que as do mercado, de seus pares, da classe quadrinística ou qualquer outro ator.

Ao mesmo tempo, é senso comum na gibisfera, para ser um influenciador de respeito é preciso falar de gibis respeitados e não daqueles que são veiculados pela baixa cultura. Portanto, é mais conveniente seguir a lógica da centralidade de temas, de nomes e de obras, do que buscar algo periférico e explosivo, que possa causar uma disrupção naquilo que já está estabelecido como de fundo central, ou seja, importante e relevante, para aquilo de natureza periférica, que não é considerado e tido, como os próprios quadrinhos, algo supérfluo, marginal, infantil, desnecessário. O irônico da situação da cultura dos quadrinhos influenciada pelos gatekeepers da alta cultura é que eles repetem as mesmas lógicas que marginalizam os quadrinhos: não considerá-lo digno de ser algo de valor. Lógica que esses mesmos atores parecem querer combater ao aplicar um verniz de elitismo, superioridade e dominação. E, mais importante, de segregação e preconceito.

Para saber mais:

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 2001.

LOTMAN, Iuri. Culture and explosion. Berlim Walter De Gruyter, 2001.

SHOEMAKER, Pamela J.. VOS, Tim P.. Teoria do gatekeeping: seleção e construção da notícia. Porto Alegre: Penso, 2011.

Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges

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