Priscila Ferraz Pasko: Duas de farinha e uma de açúcar

“De tempos em tempos, eu faço arroz de leite para uma amiga, e sempre para ela. O ‘teu arroz de leite’, diz”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução

Houve um tempo em que, quando eu queria me perder, escrevia. Usava as palavras como escudo. Ou como ponte, dá no mesmo. Era imprevisível. Eu pouco sabia antes de chegar no ponto final. Noutras vezes, era o início que surpreendia, pois chegava por último. 

Assim foi. Já não. Até que. No final das contas. Então eu.

Duas de farinha, uma de açúcar e nem todo o fermento do mundo garantem o sucesso do bolo. Receita não é mapa, é pista. O ponto de chegada nunca é o mesmo. Algo de autêntico, e por isso assombroso, empresta liga à massa. E se eu não usar leite? E se eu acrescentar canela? E se eu bater à mão? E se da forma sair um barco ou um poço? Apesar de toda fome, amor e vontade, apesar de o forno pré-aquecido a 180°C o erro se instala. E mesmo com o tempo nublado, a farinha vencida e a raiva pingando dos dedos, a fatia se desmancha fofa sobre a língua mordida.

Optei por buscar nos ingredientes o que eu não procurava. Deixei as palavras de lado, por enquanto. Falam demais e dizem pouco. Quanto ao celebrado bolo de chocolate que minha mãe faz, a massa densa, a cobertura obscura a se infiltrar, desisti de tentar. A mesma receita, caminhos distintos. Há preparos que são digitais. Ainda tento, mas apenas para errar e descobrir a falha – aqui, a troca de ingredientes ou de vogais seria fatal. Então, assim que descobrir a falha, farei dela meu acerto, pois o bolo acaba vingando, porém, de outra maneira. Só saiu errado porque eu acertei a minha receita. Ainda não sei qual é o meu erro.

Uma padaria aqui perto de casa vende quindim. São iguais aos que minha avó fazia. Os únicos que conheço. Compro o doce quando quero sentir o saber da minha avó¹. Quem produz deve ter a mesma digital que a dela. A mãe da minha mãe vendia doces e salgados ‘para fora’. Seus folhados eram elogiados. Essa mesma padaria também vende folhados iguais ao da minha avó. Será que lá também existe uma neta como eu? Como eu sou? Não sei. Lembra, estou errando a receita para descobrir. Essa conversa está muito confusa. Entende agora a história de eu me perder nos ingredientes e não mais nas palavras?

Nasceu uma digital em mim nos últimos anos. De tempos em tempos, eu faço arroz de leite para uma amiga, e sempre para ela. O “teu arroz de leite, diz. Ela parece gostar muito. Às vezes, nos finais de semana, quando a pressa não é o motor da rotina, eu gosto de preparar pratos demorados. Arroz de leite demora. Arroz, água, mexe, leite, mexe, leite, mexe, pensa, mexe, panela seca, se perde, leite, mexe, leite condensado, vai dourando de leve, mexe, onde estou mesmo, mexe, água, leite, cuida o ponto, arroz, uma bolha estoura. 

Assisti a um vídeo dia desses, no qual uma corretora de imóveis assava biscoitos antes dos interessados chegarem. O aroma proporcionava a sensação de aconchego, familiaridade, o que se comprovava na reação dos visitantes. Não faço biscoitos ou quero vender o meu apartamento que, por sinal, é alugado. Mas faço bolos para mim, amigos e amores quando acerto e, por vezes, também quando erro. Já aconteceu de o bolo não crescer, massa crua. A casa cheirando a uma promessa não cumprida. E o bolo escondido no forno. Não quis compartilhar a vergonha, cortar meus descuidos em fatias e servir com chá. Besteira, pensei, depois de lembrar que eu já escrevi para me perder. 

Não tenho certeza se este texto cresceu o suficiente, mas um pouco de manteiga e uma xícara de café podem ajudar na leitura.

¹ Eu quis escrever “sentir o sabor da minha avó, mas optei por manter o ato falho.

Priscila Ferraz Pasko (1983 – Porto Alegre) é escritora, jornalista freelancer na área cultural e graduanda em História da Arte (Ufrgs) . É autora do livro de contos “Solo rachado por dentro” (Figura de Linguagem, prelo), “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019) – Prêmio Açorianos 2020 na categoria conto. Também integra a coletânea “Novas contistas da literatura brasileira” (Zouk, 2018). Paralelamente, Priscila se dedica à dança contemporânea e a experimentos em videodança. Se interessa ainda por artes visuais, pelo processo criativo/vivência de artistas mulheres e sonhos. Divide o teto com os seus dois gatos, a Pemba e o Arruda.

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