Guilherme Smee: Alan Moore: o Salvador que o Brasil Quer ou que Merece?

“Nunca o empoderamento é concedido por alguém de um estrato superior ao daqueles que não possuem poder”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução

No dia 19 de novembro de 2023, o celebrado roteirista de quadrinhos inglês Alan Moore se autointitulou “Salvador do Brasil”. Foi em uma entrevista para Heather Parry a convite do Fundo Escocês para a Leitura, durante a Semana Escocesa do Livro. Moore, que acaba de completar 70 anos, ao ser perguntado sobre qual o papel da magia na luta contra o fascismo e o capitalismo, respondeu que a magia tem o papel de mudar a sua consciência e que esse é um passo para aqueles fins. Porém, quando a entrevistadora pede um exemplo concreto dessa magia, é quando ele se autoproclama “O Salvador do Brasil”. Segue o diálogo na íntegra, com tradução de Érico Assis (diretamente de sua newsletter):

Há exatamente um ano, minha filha me enviou a carta de um jornalista brasileiro, na qual ele dizia que as eleições estavam chegando, que era Bolsonaro contra Luiz Inácio Lula da Silva. Bolsonaro era um fascista de cima a baixo, ele estava prestes a arrasar a Amazônia, expulsar os povos indígenas e tudo mais. E o jornalista me dizia que eu tenho muitos fãs no Brasil. Ele perguntou: “O senhor escreveria uma carta explicando por que todo mundo deveria votar em Lula, não em Bolsonaro, para dar um fim no fascismo no Brasil? O senhor tem cinco dias”. Fiquei acordado até tarde e escrevi a carta que começa dizendo “Caríssimo Brasil”. Escrevi com o coração. Terminei cansado, mas ficou um texto bom. Parece que a carta foi enviada ao Lula e Lula postou para o eleitorado brasileiro e conseguiu se eleger com uma margem muito pequena. Eu sei que não foi necessariamente por causa da carta que eu escrevi, mas vou dizer que foi. E se algum dia alguém quiser… Eu nunca tive nenhum título acadêmico para botar depois do meu nome, mas se quiserem colocar “Salvador do Brasil” em colchetes, cairia bem. Então é isso: você tem como provocar alguma coisa porque você mexeu na sua consciência. É assim que se faz. É assim que a magia pode causar grandes efeitos na cultura a que estamos amarrados.

Anos atrás, outro praticante de uma magia parecida, o discípulo, depois rival, de Alan Moore, Grant Morrison convocou seus leitores para que se masturbassem para uma revista que ele havia publicado, os Invisíveis, olhando para um símbolo em uma data e hora específicos. A intenção era a de que a revista continuasse a ser publicada. A magia da “mudança de consciência” surtiu efeito e a revista não foi cancelada.Morrison e Moore são muito parecidos. Morrison e Moore são muito diferentes. Mas a rixa continua. Um dos campos de debate entre os dois é o propósito dos super-heróis. Enquanto, Moore, ressabiado e ressentido da indústria de quadrinhos de super-heróis que lhe rendeu pouco lucro sobre suas criações, menos do que julga merecedor, ressaltou diversas vezes que “os super-heróis são essencialmente fascistas”. Morrison, por outro lado, é um aliado dessa indústria, tendo escrito um livro chamado Super-Deuses, sobre a história dos super-heróis ao lado de anedotas sobre sua vida, contrapôs Moore dizendo que “os super-heróis são essencialmente românticos”.

Perceba que o problema dessas falas não está nem no fascismo, nem no romantismo, elementos que boa parte das narrativas de cultura pop ocidentais possuem em alguma medida, mas no advérbio “essencialmente”. Ao mesmo, tempo, todo romantismo tem algo de fascista e todo fascismo tem algo de romântico, é só perceber que o fanatismo de uma adoração nacionalista (ou de uma adoração de super-heróis) contém elementos que idealizam e que restringem o acesso de outros. Essa tentativa de separar elementos tão diferentes e semelhantes ao mesmo tempo, lembra da diferenciação dos ideais de masculinidade que o pesquisador estadunidense do assunto, Michael Kimmel faz, levando em conta que um não existe sem o outro.

Kimmel estabelece que existem, na prática, duas formas de ser homem, que são opostos complementares do que nos faz sermos homens, machos, na sociedade contemporânea. A primeira delas é mais romântica, é ser O Bom Homem, aquele que é gentil, educado, que se importa com a honra, que se preocupa com os menos favorecidos, os fracos, que é altruísta, e pratica boas ações. Isso se relaciona com os super-heróis de diversas maneiras. Ao lado dessa forma de ser masculino, existe O Homem de Verdade, que é, de várias maneiras, um pressuposto fascista, porque ele envolve não apenas um pavor sexual em não ser nem mulher, nem homossexual, nem bebê, mas também é um constrangimento que os homens estendem para os outros homens. Quantas vezes já ouvimos “um homem de verdade não se comporta assim”; “você é um homem ou um bebezinho?”; “homens não choram”, entre tantos chavões que nos obrigam a seguir um script não de homem, mas de macho. Temos de atuar como um ser masculino inefável, íntegro, infalível, superior a todas as adversidades, muito mais do que forte, como se usássemos uma força sobrehumana que precisa o tempo todo provar não apenas a própria macheza, mas, subliminarmente, a macheza de todo um coletivo de homens. Isso é fascismo. E isso também é super-heróis.

Portanto, no embate a favor e contra os super-heróis de Moore e Morrison, ambos estão certos e os dois estão errados. Contanto, para entender como o romantismo e o fascismo estão incrustados na nossa noção de super-heróis, perceba que, consciente ou inconscientemente, Moore se autointitulou como “Salvador do Brasil”. Despojando o texto de toda a ironia inglesa que o bardo barbudo de Northampton, alguém que busca para si o título de “salvador” sem ter sido nomeado desta forma pelo povo, não fica muito distante do que movimentos e governos populistas, fascistas, messiânicos e, portanto, românticos, fazem. Todos eles dão destaque para uma figura mítica que vem redimir o povo sofrido. Nada muito diferente das narrativas de super-heróis.

Mas tem mais coisa aí. Moore, enquanto um cidadão inglês se referindo a um povo latino-americano, que sofreu e sofre colonização de sua cultura, se coloca no pedestal do “salvador branco”, tão recorrente nas suas odiadas narrativas de super-heróis. O “salvador branco” se refere a alguém de uma cultura considerada superior, ou de maior poderio na hierarquia, que vem ao auxílio de culturas inferiorizadas. Exemplos clássicos são os bandeirantes no Brasil, os peregrinos nos Estados Unidos, os jesuítas, e tantos outros brancos que vêm ao intermédio dos “selvagens” para livrá-los de sua “selvageria”. Moore é essa força externa à cultura brasileira que se acredita (ou não) a força responsável por sua mudança e, portanto, redenção. Ao que seu discurso indica, Moore não acredita, como o próprio povo brasileiro, que ele seja capaz de salvar-se por seu próprio mérito, mas pela força de um mito, de um messias, de um salvador da pátria.

Minha tese de doutorado, em vias de conclusão, aborda um tema parecido: como os super-heróis influenciaram os sentidos circulantes no Brasil atual a ponto de pensarmos que precisamos de um ser superpoderoso, resultando no bolsonarismo. Ao mesmo tempo, a utilização de super-heróis atrelados à figura de Bolsonaro e outros políticos em plataformas digitais, é uma causa ou uma consequência do Brasil estar sempre num compasso de espera de uma figura super-heróica? E por que esse movimento todo se concentra sempre em figuras masculinas, brancas, cisheterossexuais e com renda alta?

Se de um lado temos a figura do “salvador branco”, por outro, temos a questão do empoderamento, tão erodida de seu sentido original atualmente. O empoderamento, segundo Joice Berth, é a ferramenta que uma cultura, um indivíduo, uma classe, tem de, a partir de sua própria força, sobrepujar suas dificuldades. Nunca o empoderamento é concedido por alguém de um estrato superior ao daqueles que não possuem poder. Talvez esse seja o caminho: deixar de esperar o super-herói e agir como uma coletividade de humanos, salvar-se por si próprios e não aguardar o dia em que seremos salvos. 

Se é para os brasileiros se salvarem pela magia, que não seja, ironicamente ou não, aquela vinda das mãos e dos livros de Alan Moore, mas algo bem brasileiro. Estamos metidos numa encruzilhada entre o fascismo e o romantismo, entre o Bom Homem e o Homem de Verdade, entre a mercê do salvador e a iniciativa de nos salvarmos, entre tantas outras sinucas de bico. Pois se estamos nesse cruzamento, que usemos da boa e velha macumba brasileira para combater nossos dilemas.

Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges

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