“Tiras têm sido empregadas em provas de escolas e de vestibular, em concursos públicos e em livros didáticos há tantos anos, com o entendimento de que é necessária uma mente afiada para compreender e interpretar a combinação de imagem e texto embrulhada em três ou quatro quadros”
Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre acervo pessoal
As tiras são uma forma de expressão única. Em três ou quatro quadros (existem outras variações) se conta uma piada, ou uma história, ou parte de uma história que acaba com uma piada que continua na próxima tira. Tudo de forma direta, sucinta, objetiva, trazendo, muitas vezes, referências externas de livros, de filmes, de outras artes, de momentos históricos ou políticos, entre outras. Algumas têm um desenho altamente detalhado e sofisticado, outras aparentam ser esboços ou linhas que sugerem formas e, ainda assim, têm a mesma eficiência em transmitir a mensagem, piada, história ou narrativa. Em grande parte das vezes o personagem central se repete por anos e acompanhamos sua vida, suas características, sua evolução, suas aventuras e desventuras. As tiras de humor, que são sobre as quais me refiro neste texto, acompanham nossas vidas por décadas, seus personagens se tornam nossos mascotes, nossos amigos, nosso alívio diário, nossa aventura por lugares imaginários, fantásticos ou não, que prossegue para sempre.
São muitas as tiras que fizeram sucesso mundial. Quem não se lembra de Charlie Brown e sua vida cheia de perguntas? De Calvin e Haroldo com sua pura representação da infância ou da Turma da Mônica e seus inúmeros personagens cativantes? As tiras fazem parte da nossa vida. Quem nunca curtiu ou mesmo compartilhou uma tira nas redes sociais?
Felizmente o Brasil é prolífico em tiras de alta qualidade. Além da já citada Turma da Mônica (que hoje é mais conhecida pelas revistas mensais), existem muitos outros personagens brasileiros que conquistaram ou têm conquistado nossos corações e nossos sorrisos. Temos, por exemplo, o Menino Maluquinho de Ziraldo, o Armandinho de Alexandre Beck, a Anésia de Will Leite, as multitemáticas tiras da Laerte, as Cobras e a Família Brasil de Luis Fernando Veríssimo, o Níquel Náusea de Fernando Gonsales, para citar somente alguns dos mais conhecidos. E existem muitos outros de igual qualidade, apesar de menos conhecidos, que poderiam fazer parte de qualquer lista que apontasse o que há de melhor em termos de tiras no Brasil.
Há os que acham que as HQs são uma arte menor que pode desviar as mentes dos incautos da verdadeira arte literária. Para esses, apresento o seguinte: países amplamente reconhecidos como grandes produtores de arte, cultura e literatura, como França e Japão, são também os maiores consumidores e produtores de histórias em quadrinhos. Lá às HQs são, além de arte, um produto nacional importante e muitos de seus personagens fazem parte da identidade nacional. Há lugar para todas as artes, para tudo que é bom debaixo do céu.
Produzir e apreciar tiras é sério e prazeroso ao mesmo tempo. Sua produção demanda (tanto de quem desenha quanto de quem faz o roteiro) planejamento, estudo de técnicas, conhecimento histórico e das atualidades tanto sociais quanto políticas, conhecimento de arte e cultura, tentativa e erro, trabalho diário dedicado e muito exercício de imaginação. Sua apreciação, mesmo das teoricamente mais simples, exige algum domínio da língua escrita e da linguagem visual, perspicácia, capacidade interpretativa, conhecimento histórico, político, artístico e cultural, e também muita imaginação. Não é a toa que tiras têm sido empregadas em provas de escolas e de vestibular, em concursos públicos e em livros didáticos há tantos anos, com o entendimento de que é necessária uma mente afiada para compreender e interpretar a combinação de imagem e texto embrulhada em três ou quatro quadros.
Ou seja, quer desenvolver capacidade interpretativa? Leia uma tira. Quer se divertir? Leia uma tira. Exercitar o pensamento e o raciocínio? Leia uma tira. Se maravilhar com palavras e traços, a beleza da língua e dos desenhos? Leia uma tira.
Mesmo sem palavras uma tira precisa ser lida. Ler a imagem é tão importante quanto ler as palavras. Em cada quadro e, principalmente entre um quadro e outro, acrescentamos movimento, sons, cheiros, lembranças, referências, sentimentos e tudo o mais que carregarmos conosco.
Eu amo histórias em quadrinhos, mas sou especialmente apaixonado por tiras. Faço o convite para que desenvolvamos um olhar mais apurado sobre essa forma de expressão.
Mesmo pequena em espaço, a tira pode conter um universo.

Christian David é graduado em Biologia e pós-graduado em Literatura Brasileira pela UFRGS. Tem mais de 30 títulos publicados em diversas editoras. Já recebeu prêmios como o Prêmio Saraiva 100 anos, Prêmio AGES, Prêmio Cidade de Passo Fundo, Prêmio Off-flip, Prêmio Academia Rio-Grandense de Letras, inclusão no Catálogo de Bolonha, Acervo Básico e Selo Altamente Recomendável da FNLIJ, entre outros, além de finalista nos prêmios Açorianos, Jabuti e AEILIJ. Ocupa a cadeira 24 da Academia Rio-Grandense de Letras. Nascido e criado em Porto Alegre, vive cercado de livros, filmes de ficção científica e HQs. É roteirista de várias tiras, tais como: Mosco Tosco, Vida em Marte, Piratas do Guaíba, Juca e o Tio, Periféricos e Power Pança. Adora viajar por esse Brasil afora e encontrar com leitores das mais diversas idades e interesses. Considera a imaginação como uma das grandes conquistas da humanidade.
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