Guilherme Smee: O fenômeno Deadpool

“O modus operandi do Deadpool e do Coringa atravessa uma lógica muito parecida com aquilo que Gabriela Monteiro Lunardi e Jean Burgess chamaram de ‘a cultura da zoeira'”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução

Em julho de 2024 estreou o terceiro filme de Deadpool, o mercenário tagarela da Marvel. Quando seu primeiro filme foi lançado pela 20th Century Fox em 2016, poucos apostavam que o personagem chegaria a uma terceira película. Poucos apostaram também que Deadpool seria o único personagem da Fox que seria apresentado também pela Disney, quando a corporação comprou as propriedades intelectuais e todo o resto do estúdio hollywoodiano que também teve Predador, Aliens, Simpsons e outros sob sua posse.

Neste terceiro filme Deadpool se vende — sim, porque ele fala com os espectadores, caso você ainda não saiba, quebrando aquilo que se chama de quarta parede — como o Jesus da Marvel. Se formos pensar em narrativas messiânicas, isso pode ser verdade. Assim como Moisés, Jesus ou até mesmo o Superman, ele é, em tese, o último sobrevivente de um mundo moribundo que é inserido em uma nova realidade, e acabam se tornando um símbolo de esperança de todo um povo. No caso do Deadpool, os “fiéis seguidores”, ou “true believers” como diria Stan Lee, o artífice da Marvel Comics, são os próprios espectadores dos filmes da Marvel.

Esse papel de salvador de um universo moribundo — o dos filmes de super-heróis da Fox — se confirma se formos olhar os números de bilheteria dos filmes de Deadpool. Tanto o segundo como o primeiro filme do personagem, nessa ordem, são os dois mais bem colocados filmes de super-heróis da 20th Century Fox nas bilheterias de todos os tempos ao redor do mundo. O terceiro filme promete outro feito incrível, que é a maior bilheteria de estréia de uma película voltada para o público maior de 18 anos. Sim, Deadpool tem esse feito também para “se orgulhar”. Mas não só isso, ele foi um boneco que ajudou a alavancar a carreira de seus criadores e de seus subsequentes titereiros. 

Deadpool começou como apenas um coadjuvante na revista dos Novos Mutantes, a equipe juvenil dos X-Men. Era a antepenúltima revista da série, que logo seria substituída pela X-Force e Deadpool era um mercenário contratado pelo misterioso Tolliver para matar Cable, o então líder do Novos Mutantes. Tanto Cable como Deadpool são produtos da mente de Rob Liefeld, o enfant terrible da Marvel dos anos 1990. Liefeld é conhecido por sua arte inconfundível, por sua tendência a usar muitas hachuras, desenhar mais dentes, bolsos e músculos do que é necessário e por evitar desenhar os pés dos personagens. Há, inclusive, uma piada com isso no último filme do Deadpool. Liefeld concebeu Deadpool como uma versão do personagem Slade Wilson, o Exterminador, dos Novos Titãs. E, não por acaso, o nome real do mercenário tagarela é Wade Wilson. 

Edições-chave da cronologia de Deadpool nos quadrinhos: The New Mutants #98 (1990); Deadpool, Vol. 1 #1 (1997) e Deadpool Corps (2010). Reprodução

Liefeld, depois, fundou a Image Comics, com outros dissidentes da Marvel. Mas isso é uma história pra outra hora. O fato é que ele e Fabian Nicieza, o co-criador argentino do personagem, não desenvolveram muito a origem e a mitologia do Deadpool. Depois de ter ganhado duas minisséries em quadrinhos, em 1997 a revista regular do personagem ficou a cargo de Joe Kelly e Ed McGuinness e serviu de trampolim para a carreira dos dois. Por exemplo, Kelly junto com seus parceiros da Man of Action, criou a série de desenho animado Ben 10 que é sucesso mundial. Foi na fase de Kelly, em que McGuinness foi sucedido por outros artistas, que personagens coadjuvantes como a Cega Al, o Fuinha, T-Ray, Francis e Buck.

Deadpool passou alguns anos apagado com o fim dessa primeira série, devido a uma disputa por direitos autorais com Rob Liefeld. Cable passou a se chamar Soldado X, a X-Force virou X-Táticos e, por sua vez, o título de Deadpool recebia o Agente X. Ele só retomou sua popularidade em 2008 quando Daniel Way assumiu os roteiros de sua revista em quadrinhos. Way tinha um estilo que combinava bastante com o Deadpool e contribuiu para deixar o personagem ainda mais exagerado nas cenas gore, nas piadas de baixíssimo calão e menos focado na interação com o leitor. Way pretendia ser um Garth Ennis (criador de The Boys) com muitíssimo menos crítica social e a profundidade de um pires. Mas nada disso impediu que a carreira de Way também decolasse. Ele se manteve por cinco anos no título do mercenário tagarela e foi responsável por um bem-avaliado videogame homônimo do personagem produzido em 2013.

O recordista de anos produzindo as histórias de Deadpool é o roteirista Gerry Duggan. Ele começou a co-escrever a revista ao lado do comediante Brian Posehn em 2012. Quatro volumes da revista Deadpool depois, em 2018, quando o gibi atingiu a numeração de legado 300, ele disse adeus ao personagem para alçar voos maiores na Marvel. Duggan ficou seis anos produzindo as histórias do Deadpool, onde pôde trazer diversas versões alternativas do personagem como o Nicepool, o Zenpool, a Deadpool 2099, os Mercenários Pagos do Deadpool, sua filha Ellie, além de casar Deadpool com a Rainha dos Monstros Subterrâneos, Shiklah.

Desde então, a Marvel produziu outros quatro volumes de Deadpool até os dias de hoje, mas nenhum com um sucesso comparado com as fases de Kelly, Way ou Duggan. Muito antes pelo contrário, a fase mais longa dessas quatro teve apenas 15 números. Vale dizer que no ano de 2022 nenhum título solo do mercenário tagarela foi publicado pela Marvel Comics. Talvez uma explicação para esse hiato seja o impacto que os filmes do personagem tiveram nos quadrinhos, porque subiram a régua tanto na qualidade dos roteiros (vide o primeiro filme), quanto nas escabrosidades que Deadpool falava e fazia. Assim, é possível que a Marvel Comics tenha perdido a receita do Deadpool dos quadrinhos ao adaptá-lo para o cinema.

Um dos fatores que complica a reinserção de Deadpool nos quadrinhos é o tipo de humor que ele desenvolve. Essa comédia é gráfica demais para os quadrinhos, que congela a imagem escatológica em um quadro ou num diálogo que está fixo numa página e, portanto, ao escrutínio demorado do leitor. Já no cinema, a ação e o timing da piada correm de uma forma diferente, o que permite a verborragia de trocadilhos e piadas infames do mercenário tagarela e que imagens chocantes sejam absorvidas de forma mais “natural” pelos espectadores. E agora que os fãs do personagem sabem como ele pode ser no cinema, e que lá ele rende muito, e mais, podem dispensar os quadrinhos.

O Deadpool não é um super-herói feito para crianças (não que algum deles tenha sido feito, mas esse pensamento está gravado no senso comum). Ele é desbocado; ele deixa uma pilha de cadáveres por onde passa, massacrando essas pessoas das maneiras mais criativas possíveis – seu nome em países hispanohablantes é Massacre, por sinal -; ele é sádico com os outros e consigo mesmo, porque seu corpo permite que regenere qualquer ferimento; ele é um personagem amoral e antiético que só pensa em si mesmo, sem esquecer que é um mercenário, ou seja, faz o que qualquer um mandar para quem pagar mais. E ainda assim, muitas pessoas se identificam com ele ou querem ser como ele. Muitas acham o que ele faz engraçado, porque ele leva o nonsense a níveis absurdos que nenhum ser humano civilizado e com as faculdades mentais em dia ousaria chegar. 

O Deadpool é um personagem do absurdo, assim como o Coringa, outro personagem cuja popularidade é calcada no caos que espalha. O Coringa também ganhará um filme em 2024, Coringa: delírio a dois, estrelado novamente por Joaquin Phoenix em que contracena com a Arlequina — a mulher que abusou de todas as formas – e que será personificada na tela grande pela superstar Lady Gaga. Tanto Deadpool como Coringa são dois ídolos que tem o deboche como base de suas narrativas, um deboche nada saudável, eles riem daqueles a quem se dirigem e que os idolatram. Deadpool e Coringa são dois personagens niilistas e que, por não suportarem a realidade de suas vidas, resolvem escarnecer como todas as realidades. 

Divulgações dos três filmes do mercenário tagarela: Deadpool (2016), Deadpool 2 (2018) e Deadpool e Wolverine (2024). Reprodução

O modus operandi do Deadpool e do Coringa atravessa uma lógica muito parecida com aquilo que Gabriela Monteiro Lunardi e Jean Burgess chamaram de “a cultura da zoeira”, em um artigo em que analisaram o humor brasileiro em memes de internet, em um artigo de 2020. As autoras analisaram os sentidos da frase “the zoeira never ends” ou seja, “a zoeira nunca acaba”, relacionando essa acepção com a ideia de carnavalização cunhada por Mikhail Bakhtin. O carnaval, segundo Bakhtin, é um momento em que as classes mais baixas podem se libertar e subverter a ordem ou ironizar e ressignificar o poder emitido pelas elites e autoridades.

Lunardi e Burgess entenderam que justificar os atos através da zoeira “funcionava como uma autorização que dava liberdade para os internautas de ridicularizar os sérios problemas e falhas de seu país”, retratado de forma canhestra e irônica, “ridicularizando seus fracassos como nação, quase como se fosse motivo de orgulho”. A zoeira é, para as autoras, uma forma de conexão cultural mostrando os absurdos brasileiros, como um alívio da tensão coletiva que gera um sentimento de subversão do poder.

É essa mesma catarse que Deadpool e Coringa permitem. Eles fazem o que todos têm vontade de fazer por se sentirem inferiorizados em um sistema cada vez mais pesado e massacrante socioeconomicamente. Eles não têm os freios morais, psicológicos, civilizacionais, éticos, enfim os filtros que a grande maioria das pessoas adultas socializadas e funcionais têm. Mas cumprem os desejos mais profundos e vis, mais primitivos e pulsantes que todos nós, em algum momento de nossa vida já tivemos – de ser ou agir como eles – e os fazem sem medir as consequências. Porque podem. Porque são personagens ficcionais e as leis do nosso mundo não se aplicam ao mundo deles. Ao projetarmos nossos anseios nas ações deles, podemos praticar os absurdos que sempre desejamos secretamente, mas nunca fomos permitidos, por diversas pressões sociais. Talvez esse seja o segredo de personagens como esses e talvez essa seja a razão de seu estrondoso sucesso em uma sociedade do cansaço, que se esgotou nas formas de permanecer tolhida de todos os lados, tentando ferozmente ser o que não é. Quer gostemos deles ou não, Coringa e Deadpool são sintomas do estado em que nossa sociedade se encontra.

Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges

Apoie Literatura RS

Ao apoiar mensalmente Literatura RS, você tem acesso a recompensas exclusivas e contribui com a cadeia produtiva do livro no Rio Grande do Sul.

Avatar de Literatura RS
Literatura RS

Uma resposta para “Guilherme Smee: O fenômeno Deadpool

Deixar mensagem para rafaelmartinsdacosta Cancelar resposta