Guilherme Smee: A crise de meia-idade masculina de Mark Millar

“Essas crises costumam se alongar muito mais em homens que em mulheres e vêm acompanhadas de um grande sentimento de remorso e vontade de se isolar dos demais”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução

Mark Millar talvez seja o roteirista de quadrinhos de super-heróis que melhor soube capitalizar sua fama. Depois de ter conquistado seu lugar no coração e nas mentes dos fãs tendo trabalhado com personagens como a Liga da Justiça e os Vingadores e principalmente sendo o escritor responsável pela minissérie de grande sucesso da Marvel, Guerra Civil. Esta última foi adaptada para os cinemas dentro da série de filmes do personagem Capitão América. 

No início dos anos 2010, Millar criou seu próprio selo de quadrinhos, o MillarWorld, em que desenvolveu séries autorais que viraram grandes sucessos do cinema, como Kick-Ass: Quebrando Tudo, O Procurado e mais recentemente Kingsman. No final da década passada, Millar fez um acordo com a Netflix para repassar os direitos autorais de seus quadrinhos para serem publicados e produzidos pelo canal de streaming. A primeira produção audiovisual de Millar pela Netflix, O Legado de Júpiter, acabou tendo uma performance aquém do esperado e a série não foi renovada para uma nova temporada.

Millar nasceu em 1969 e atualmente tem mais de 50 anos. Contudo, em praticamente todos os seus quadrinhos podemos notar que existe, por parte dos personagens, o exercício de uma masculinidade exacerbada como uma compensação para a perda da juventude ou da virilidade. A retórica do autor está aliada a dois sentimentos típicos da sua geração, que são os discursos de crise da masculinidade e da crise de meia idade. Falarei mais a fundo sobre eles.

Francis Dupuis-Déri acredita que não exista uma crise da masculinidade em nossa sociedade, mas um discurso de crise masculina que vem se repetindo desde a Roma Antiga para justificar o abandono de algumas tradições a despeito do surgimento de novas práticas. Geralmente esse discurso de crise da masculinidade está associado à perda de privilégios pelo homem branco heterossexual que vem acontecendo desde que outros segmentos da sociedade vêm lutando pelos sues direitos. Millar é um homem europeu branco e heterossexual vindo de uma realidade de ascensão de privilégios de classe. A crise de masculinidade abordada por Millar em seus quadrinhos tem menos a ver com um âmbito social, mas com um âmbito pessoal dos personagens, que se sentem despojados de seus privilégios e por isso, impotentes. Essa crise pessoal da masculinidade tem relação com a crise da meia-idade.

A crise de meia-idade é um sentimento de impotência, desespero e ansiedade que costuma acometer principalmente homens entre os 40 e 60 anos de idade. A expressão foi criada em 1965 por Elliot Jacques, médico norte-americano, para explicar a sensação de insegurança que essas pessoas passam ao perceber que sua juventude está acabando e sua velhice está começando. Esse tipo de crise está bastante associada à geração dos baby boomers, que nasceram após a Segunda Guerra Mundial.

Esse tipo de crise desencadeia pensamentos depressivos e destrutivos e geralmente acarreta numa mudança de estilo de vida, como se a pessoa tentasse compensar aquilo que não conseguiu desenvolver anteriormente num afã agudo para fazê-lo nos próximos anos da sua vida. Pode culminar em síndrome de burnout ou ainda em internações psiquiátricas. Essas crises costumam se alongar muito mais em homens que em mulheres e vêm acompanhadas de um grande sentimento de remorso e vontade de se isolar dos demais. Entre alguns dos filmes que retratam a crise da meia-idade estão O Pecado Mora ao Lado, estrelado por Marilyn Monroe, e Beleza Americana, com Kevin Spacey no papel principal.

A crise da meia idade tem, claro, também a ver com a impotência sexual, uma vez que o falo — não necessariamente o pênis, mas toda a simbólica que reveste o ser masculino — é incapaz de demarcar seu território através de sua força simbólica e física. O destaque que Millar dá aos personagens masculinos em suas obras denota a manutenção do poder nas mãos dos homens e do patriarcado, como uma forma de expressar a naturalidade do poder masculino, exagerado, bombástico, escandaloso, como na maioria dos filmes de ação dos anos 1980 só que trazidos para sua versão do século XXI. Os quadrinhos de Millar reproduzem a lógica heterossexual e patriarcal, defendendo de forma bastante canhestra os privilégios e os poderes masculinos.

O último quadrinho de autoria de Mark Millar a sair no Brasil foi Rei dos Espiões. Foi a partir dele que pude perceber esse padrão estilístico-temático nas obras de Millar. No fundo, a maior parte das obras de Mark Millar: sobre a crise da masculinidade e a crise da meia-idade. Começando por Kick-Ass, em que somos apresentados a um rapaz que não se sente homem o suficiente para cumprir as demandas que a sociedade patriarcal dispõe e precisa apelar para a violência descabida para que possa, finalmente, se tornar pleno. No meio disso, vai levar muita porrada para poder provar seu ponto: que a violência é uma redenção. 

O mito da violência redentora é um pressuposto que está presente na mitologia dos quadrinhos anglófonos de super-heróis e não precisamos ir muito a fundo para saber que masculinidade (ou virilidade) e violência estão intrinsecamente ligados. Segundo a psicanalista Susana Muszkat, “a violência é uma forma possível, embora deletéria, de resposta, que tem a finalidade de procurar solucionar um conflito através da eliminação de uma das suas partes”. Neste caso, quando esse conflito é interno, a busca redentiva vai ao encontro de eliminar a parte fragilizada, que demonstra fraqueza que, geralmente, é tida como o lado feminino da equação. 

Procurado é sobre um jovem homem que se frustra com o trabalho e também com a situação de impotência que o mundo do patriarcado e do precariado capitalista o coloca e, através da herança e tradição paterna, descobre que deve se transformar em um vilão porra-louca. Jesus Americano tem como protagonista um menino bonzinho demais, cujos métodos são sofisticados e amenos demais para se encaixar em um exemplo de masculinidade. No final do quadrinho descobrimos que o pretenso messias é o diabo, performando, de vez, a macheza escondida na maldade do personagem. 

Starlight, Legado de Júpiter, Rei dos Espiões, todos eles lidam com homens velhos resolvendo seus problemas de crise de masculinidade e da velhice através de um mecanismo compensatório do ego, que é a catarse produzida pela violência vitimando aqueles que supostamente o colocaram naquela situação. Fazem todo esse movimento de culpabilizar não a si mesmos, mas aos outros, algo típico dos discursos de crise de masculinidade, para recuperar a juventude (e a virilidade) perdidas, por meio de atos violentos. Os personagens, contudo, deixam de pensar no sistema machista e patriarcal que os tornam vítimas e algozes ao mesmo tempo. Afinal, somente o homem heterossexual precisa embarcar numa luta, desde que nasce, para se provar macho o suficiente para que seja parte útil da sociedade humana.

Kingsman, assim como Rei dos Espiões, é baseado em 007, mas são espiões deprimidos e preocupados com seu status que caiu em desgraça. Passando a mensagem do “macho alfa” para outros homens se sentirem vitalizados novamente. A Ordem Mágica também lida com essa lógica. Ambas as obras lidam com a “passagem do legado”, um ritual cerimonial masculino presente nas mais antigas sociedades, em que o jovem precisa se provar homem para integrar a sociedade que seus pais fazem parte. 

Mais que isso, além dos privilégios da masculinidade, as histórias em quadrinhos de Mark Millar também glamourizam os privilégios econômicos e sociais. Crononautas traz homens no melhor estilo bon vivant e playboys, assim como muitos outros títulos de Millar como Nêmesis e MPH que apostam na narrativa dos super ricos para vender suas HQs. A narrativa dos super ricos, como atesta a vida de Hugh Hefner e a análise que Paul B. Preciado fez sobre a arquitetura do império da revista Playboy também servem como discurso de manutenção de privilégios do patriarcado.

Outro quadrinho de Millar, Superior, além de trazer a mensagem do homem adulto como sujeito realizador, em detrimento a sua versão infantil, também traz uma mensagem capacitista. O mesmo pode ser dito de Huck. Mesmo os quadrinhos que trazem mulheres como protagonistas, tais como Imperatriz e Renascida, embora tragam as poucas protagonistas femininas do Millaworld também lidam com crises de meia-idade e um machismo enrustido. É preciso demarcar e destacar que essas narrativas de superioridade e de dominação nos quadrinhos de Mark Millar não são escancaradas, mas que trabalham subliminarmente para reiterar valores e privilégios masculinos, etários e classistas incrustados na sociedade. 

Fazia um bom tempo em que as narrativas do autor me incomodavam, principalmente por sua necessidade de grandiloquência, como monumentos obeliscos, fálicos, de que tudo precisasse ser escandaloso e chamar atenção o máximo possível. Agora entendo que tudo tem a ver com a necessidade de afirmação e de demonstrar a importância que vem calcada na sociedade patriarcal para os homens desde o início dos tempos.

Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges

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