“Quem já perdeu tudo não tem nada a perder. Como diz o próprio Demolidor de Frank Miller: ‘um homem sem esperança é um homem sem medo’”
Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução
Este ano completo dez anos fazendo quadrinhos no Brasil. Nestes dez anos fui contemplado com dois prêmios: uma hérnia inguinal e o diagnóstico de pressão alta nível vermelho, com meu sistema cardiovascular envelhecido sete anos a mais que minha idade real. A pressão alta, além de outros fatores, tem a ver com níveis de estresse elevados.
Sempre me descrevi como um verdadeiro apaixonado pelos quadrinhos. Mas nunca pensei que eles poderiam romper meu coração literalmente. “Os quadrinhos vão partir seu coração”, é uma frase clássica atribuída a diversos quadrinistas. Um deles é Jack Kirby, criador de diversos personagens da Marvel e da DC Comics, outro deles é Charles Schulz, criador de Charlie Brown e Snoopy. Existe até mesmo um livro com este título. Os quadrinhos vinham partindo meu coração metaforicamente já há um bom tempo, e este ano começaram a partí-lo literalmente. Me senti sobrecarregado de atividades estressantes envolvendo quadrinhos tentando almejar um reconhecimento da cena de quadrinhos brasileira que nunca vinha. E nunca virá. Desisti de produzir quadrinhos. Sou um fracassado dos quadrinhos.

No livro Desejo de Status, de Alain De Botton, o autor investiga nossa vontade de ser reconhecido. Em primeiro lugar ele descreve que a nossa autoimagem é diretamente proporcional à relação que estabelecemos com os outros: se deles obtemos amor ou desprezo. Quanto mais recebemos amor, mais somos autoconfiantes e seguros. Quanto mais desprezo, menos conseguimos nos sentir satisfeitos com o que somos e representamos.
Daí vem a fórmula do sucesso que, segundo De Botton, surge da divisão da sua carga de autoestima sobre a sua quantidade de pretensões. O ideal para se atingir o sucesso, para o autor, é ter uma grande autoestima e baixas pretensões. Ou então, uma autoestima proporcional às suas pretensões. Aqueles que têm baixa autoestima, como eu, têm menos chances de atingirem o que consideram o sucesso se têm altas pretensões. Já os que são o contrário conseguem transitar na vida independentemente do julgamento alheio, têm mais chances de alcançar o sucesso e conquistar suas pretensões.
Nessa fórmula, entretanto, segundo o autor, também entram cálculos ligados com outros fatores, como por exemplo, a meritocracia. Por exemplo: ele é popular e por isso é mais digno ou valioso. Ele tem cem mil seguidores nas plataformas então vai agregar mais à nossa empreitada. Ele tem o aval da editora Y e indicação da pessoa X e por isso nós vamos chamá-lo para nosso grupo. A meritocracia é um sistema desigual que mina as chances de sucesso de um indivíduo qualquer, porque nela se acredita que quem não tem sucesso é aquele que não se esforça, quando muitos trabalhadores braçais do mundo sabem que isso é uma conclusão ingrata e cruel.

O sucesso também tem a ver com o que Botton chama de dependência, ou seja, ele é inconstante e depende do contexto. Por exemplo, ninguém nasce com o “dom” dos quadrinhos como é popularmente pensado, tudo depende de muito esforço. Mas algumas vezes também depende de sorte e esperteza e, claro, de uma grande autoestima e perseverança. Mas o ideal meritocrático de nossa sociedade também estabelece algumas dúvidas para aqueles que alcançam o sucesso: será que o dinheiro que ganham faz com que sua consciência os deixe tranquilos? Será que fazem sucesso por mérito próprio ou porque têm amigos que fizeram conquistá-lo e esse sucesso depende muito mais dos amigos que deles mesmos? Será que são bons o suficiente para terem tanto sucesso? E se são bons e tranquilos, será que são felizes com o que têm? Além disso, segundo o autor, depois de uma realização ou aquisição de um bem, nossos níveis de felicidade não tendem a se estabilizar, mas a baixar. Ou seja, o sucesso é uma busca constante e incessante.
Contudo, com a perspectiva da morte, o sucesso muda de figura. Foi tendo esse acontecimento final da vida que resolvi fundar uma Gibiteca, onde outros possam usufruir do mesmo conhecimento e diversão que eu tive, que eu deixe um legado e alguém se lembre de mim quando eu me for, além é claro, de usar os quadrinhos como incentivo à leitura e forma de mudança de vidas. Segundo a doutrina cristã o senso de comunidade e abnegação em prol do alheio pode ser um indicador de sucesso na vida. Contudo, ser abnegado e ajudar aos outros em detrimento de si mesmo também é sinônimo de ser trouxa e paspalho na contemporaneidade. Quem muito pensa nos outros, acaba deixando de levar em conta a si mesmo e, por isso, é um fracassado.
Jesus fala em partir o pão, em viver em comunidade, mas para obter sucesso poucos pensam em partilhar oportunidades e dicas, como acontece também na cena de quadrinhos brasileira. Por isso é tão difícil nos organizarmos em instituições que busquem benefícios em prol coletivo. Mesmo que esses movimentos comecem, eles não engrenam, porque dependem de liderança, desapego material e uma certa estabilidade financeira e na confiança depositada na própria cena de quadrinhos. Nessas instituições e grupos de internet é muito raro ter o envolvimento de pessoas da cena que atingiram o que é considerado sucesso nesse mercado, que poderiam ensinar aos demais, porque em grande parte das vezes essas pessoas são autocentradas e não tem tempo e nem disposição para buscar algo que seja saudável para a cena e não para seu bolso. Quando essas pessoas estão envolvidas, geralmente estão buscando propagandear cursos e oportunidades pagas que faça com que os iniciantes ingressem em determinados círculos de influência. As pessoas de sucesso da cena de quadrinhos possuem a autoestima necessária para que não precisem se dar ao luxo de compartilhar os seus “segredos” com aqueles que não tem mérito para chegar lá por si só. Além disso, ter mais pessoas fazendo sucesso significa que menos do reparte de capital irá para os poucos que são bem sucedidos. Por isso, menosprezar os esforços alheios está no modus operandi de diversas figuras estabelecidas da cena brasileira. Que muitas vezes, não surpreendentemente, se relacionam entre si.
Depois disso tudo, ainda temos os quadrinistas boêmios, que preferem se excluir da cena, viver de luz e da arte, que não fazem questão de mostrar os seus trabalhos em eventos ou mesmo buscar editoras, mas que de certa forma estão ali presentes. Não querem sucesso financeiro, mas querem ser badalados. Eles estão presentes nos circuitos “artês” da cena, e têm ojeriza a qualquer evento que vise demais o lucro pelo lucro. Para eles, o mérito da arte que produzem é se aproveitar dos valores equivocados do público sobre a mídia dos quadrinhos que dominam. Além disso, o sucesso comercial é visto por essa categoria como algo condenatório moral e eticamente, e que foge de toda a essência da arte. Também acreditam que o sucesso comercial tem a ver com pessoas alijadas de imaginação. Os boêmios foram os criadores do mito do perdedor incompreendido.
E aqui começa o lado bom de ser fracassado. Charles Pépin escreveu o livro As Virtudes do Fracasso, e nos diz que o ser humano é um animal preparado para lidar com o fracasso e não o sucesso. O ser humano precisa se tornar homem, mas não o homem no sentido de adulto ou de masculino, mas no sentido de íntegro e inteiro, como no poema “Se” de Rudyard Kipling. Pépin nos diz que um filhote de cavalo, um potro, já nasce pronto. No primeiro dia que nasce, já sai trotando por aí. Os bebês humanos levam de um a dois anos para andar e falar. Isso porque a gravidez humana é interrompida antes do tempo. Segundo estudiosos que investigaram a gravidez de macacos mais próximos dos homens, como gorilas, chimpanzés e orangotangos, os humanos deveriam ter um período de útero entre 14 e 21 meses para se desenvolverem totalmente. Portanto, a imperfeição e o erro são essenciais ao ser humano para perseverar.
Para o autor, perceber, nomear e assumir o fracasso nos ensina a aprender mais rápido, nos faz retificar nossos erros, abre uma janela para reflexão, para o descanso e para colocar as coisas em perspectiva. O fracasso nos ajuda a afirmar nosso próprio caráter e mostrar que temos uma boa índole e que não buscamos prejudicar ou pisar nas pessoas na nossa caminhada, ao mesmo tempo que nos torna humildes e nos ajuda a aceitar as coisas da vida. O fracasso nos faz colocar os pés na realidade e sentir como o mundo realmente funciona, a fazer conexões e perceber quem são nossos aliados verdadeiros. Com ele podemos nos reinventar e abrir possibilidades antes não percebidas. Podemos nos permitir a ousar mais.

Segundo Pépin, até mesmo a depressão é um sinal de perseverança: de que há algo escondido neste ser humano que precisa ser desvelado e resolvido. Pépin traz diversos causos de “perdedores” que se tornaram “vencedores” muito maiores por causa das adversidades que sofreram. Rafael Nadal, J. K. Rowling, Steve Jobs, John Travolta, Charles de Gaulle, Serge Gainsbourg, Charles Darwin, Thomas Edison e até Winston Churchill. Em resumo, o livro de Pépin prova que existem obstáculos que nos tornam mais fortes. Prova que quanto mais caímos, levantamos cada vez mais fortes.
Afinal, quem chega ao fundo do poço, não tem mais nenhum lugar para onde ir, a não ser escalar o poço, não é mesmo? E também, quem já perdeu tudo não tem nada a perder. Como diz o próprio Demolidor de Frank Miller: “um homem sem esperança é um homem sem medo”. Um homem sem medo é capaz de quebrar todas as barreiras que construíram para ele ou que ele mesmo engendrou. Aquele que não tem nada a perder não precisa se preocupar em agradar aos demais com medo de ser castigado por enfrentar quem seja. Por isso, quando o sucesso não depende da quantidade do seu esforço e sim da boa vontade das outras pessoas, é bom lembrar a frase de Epicteto: “o que depende de ti é aceitar ou não o que não depende de ti”.
Os quadrinhos, e os mecanismos de valorização na cena de quadrinhos invariavelmente, vão partir seu coração, vão te decepcionar, vão te frustrar, vão ser cruéis, vão ser ingratos e principalmente não vão reconhecer o seu esforço para que eles cresçam e se popularizem. Depende de ti aceitar que isso não depende de ti. Esse sucesso específico vem das mãos de outras pessoas. E quem está fracassando nesse processo não é só o artista fracassado, mas quem estabelece esse sistema meritocrata e aqueles que o alimentam e se submetem a ele. Os quadrinhos são uma arte, um sistema, uma mídia, mas não são capazes de agirem e nem tem vida própria. Não são atores, são o palco. Portanto, a frase de Kirby ou de Schulz e de tantos outros criadores que nunca receberam méritos suficientes e/ou morreram no ostracismo, deveria ser “o mercado de quadrinhos vai partir seu coração”. Espero que você sobreviva à experiência!
Para saber mais:
DE BOTTON, Alain. Desejo de status. Porto Alegre: L&PM Editores, 2020.
PÉPIN, Charles. As virtudes do fracasso. São Paulo: Estação Liberdade, 2018.


Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges
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Essa é uma dor que me parece inevitável. Nos anos em que não produzi quadrinhos, me consumia o vazio de não fazê-los, de não participar e de ver outros artistas florescerem.
Agora que os faço, me consome o vazio da frustração e do fracasso, como você descreve. Contudo, reconheço que este último é, ao menos, salpicado de momentos de satisfação. O mero ato de ‘fazer’, em si, tem seu prazer, efêmero que seja. Ao menos para mim.
E fica a questão: se a vida é uma sucessão de caminhos vazios, de que adianta desistir de algum deles só para cair em outro fracasso?
Talvez, desistir seja uma ilusão.
(Não quero com este comentário julgar suas escolhas, meu amigo. É só uma reflexão, um desabafo de um companheiro igualmente derrubado por aquilo que ama).
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Que texto incrível e profundo sobre a fragilidade de acreditar na produção da arte das histórias em quadrinhos.
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