Cristiano Fretta: O insuportável mundo das amenidades literárias

“A literatura se constituiu como uma ferramenta de contemplação, seja no ato da leitura, seja nas assimilações posteriores a ela que nossa subjetividade é capaz de fazer”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio

Fiquei muito tempo pensando em alguma citação literária para abrir este texto. Catei nas entranhas do meu cérebro qualquer frase que não fosse óbvia, eu queria uma sentença sintética e profunda capaz de traduzir por meio de poucas palavras o fato de que a vida é uma merda. Tudo o que encontrei, no entanto, me pareceu não digo de todo fútil, mas sobretudo incapaz de ser suficientemente incisivo. Resolvi, então, tirar o reboco da conotação e escrever na lata: a vida é uma merda. Eu a acho uma merda sobretudo pela falta de liberdade que a lógica do mundo contemporâneo nos imprime, Sísifos que somos em ter que todo dia carregar nossa pedra montanha acima sem podermos fazer nada contra o fato de que ela invariavelmente rolará para baixo no próximo dia útil. Dessa forma, viver nos obriga a, em maior ou menor intensidade, termos que aturar coisas as quais julgamos insuportáveis.

Eu, por exemplo, preciso aguentar o rosto de Pablo Marçal nas redes sociais, observar o motorista de trás acelerar quando dou pisca para mudar de faixa e ouvir que brasileiro não sabe falar português. No entanto, essas situações não passam de pequenas chateações quando colocadas em paralelo com duas das principais coisas que alicerçam a minha certeza de que a vida é uma merda.

A primeira delas é dinâmica em grupo. Poucas coisas nesta vida (de merda) conseguem me deixar com tanto ranço. Como professor, já precisei passar por inúmeros momentos vexatórios promovidos pelos meus chefes. Certa vez, em uma conhecida escola de Porto Alegre, durante uma reunião pedagógica em uma semana cheia de provas que precisavam ser corrigidas, todos os professores foram orientados a formar um imenso círculo no pátio central. Então, um ficava atirando para o outro um novelo de corda estendida, tendo que dizer por que escolheu tal pessoa. Quando chegou à minha vez, só havia sobrado uma monitora da educação infantil de quem eu não sabia sequer o nome. Mesmo assim, joguei o novelo para ela e justifiquei a escolha dizendo que ela parecia muito feliz na profissão. Me senti um idiota dizendo isso sobre uma desconhecida. Que maravilhosa metáfora para a conexão entre as pessoas! Em outro momento (nem lembro mais se foi no mesmo ano do tal novelo), no mesmo pátio da mesma escola, cada professor recebeu um papel com uma cor. Depois, grupos foram formados a partir das cores que cada um recebeu. Eles tinham entre 6 e 8 integrantes. Meio constrangida, surgiu uma auxiliar da escola, portando pedaços de corda. Seu trabalho era passá-la ao redor das pessoas de cada grupo, transformando-o, assim, em um amontoado de pessoas amarradas. Então, uma sorridente coordenadora pegou o microfone e disse que havia várias caixas de bombons escondidas pelo pátio, e o grupo que conseguisse achar mais caixas ganharia o desafio. Ah, esqueci de dizer que era Páscoa. Uma colega grávida estava espremida entre mim e o professor de educação física. Depois de muito empurra-empurra e gritaria desordenada, o meu grupo conseguiu encontrar duas caixas de bombom. Houve um grupo que encontrou quatro. Outros não encontraram nada. Ao final, os nós foram desfeitos e nós pudemos caminhar como um ser humano normal. A coordenadora pegou o microfone e perguntou o que havíamos aprendido com o desafio. Depois de muito silêncio e da manifestação dos mesmos puxa-sacos de sempre, ela chegou a uma conclusão: o quanto o trabalho em equipe era importante. Uau! Eu seria incapaz de perceber isso sem que me amarrassem com uma corda na frente de uma mulher grávida. Genial… Em seguida, as caixas de bombons foram todas colocadas em frente à coordenadora, que as abriu uma por uma, dizendo que naquela escola havia um ambiente de partilha cristã e que, portanto, todos desfrutariam dos doces, mesmo aqueles grupos que não conseguiram encontrar nenhuma caixa. Estou emocionado, ironizei para um colega tão ranzinza quanto eu.

Amenidades literárias são a segunda coisa que me trazem uma profunda chateação. Não consigo suportar o rosto impositivo de autores ao lado de frases que, na melhor das hipóteses, estão tiradas de contexto. E sim, como as pessoas gostam de uma amenidade literária! Em quantos contextos diferentes eu já me deparei com essa visão lúdica e superficial da literatura. Em quantas postagens de Facebook e Instagram, em quantos grupos de WhatsApp eu precisei engolir em seco a visão insuportável de um Fernando Pessoa utilizado de forma branda e fútil, para que eu não parecesse (com razão) um chato e, portanto, criasse ruídos de convivência com pessoas próximas a mim.

O leitor mais atento pode estar percebendo, a essa altura do texto, que há uma mesma energia entre as amenidades literárias e as dinâmicas em grupo. Sim, há. E foi exatamente isso o que a coordenação da mesma escola percebeu. Dessa forma, em uma segunda-feira, após 11 períodos de aula, eu me vi atirado em um inferno. Eis a ideia brilhante: novamente fomos separados por grupos, mas dessa vez utilizando as áreas do conhecimento. A seguir, em uma folha A3 (sim, era necessário ampliar a cafonice), cada grupo recebeu uma frase de algum autor. Eu não pude conter meu espanto quando o meu grupo de linguagens recebeu o seguinte: “Se você se sente infeliz agora, tome algumas providências agora, pois só na sequência dos agoras é que você existe. (Clarice Lispector)”. Eu não preciso lembrar do texto: eu fotografei o momento, para que eu jamais pudesse esquecer daquela vexação toda. Não pude esconder minha insatisfação. Era nítido o meu ranço e meu profundo desapontamento. Como se não bastasse, cada grupo ficaria responsável por fazer um texto sobre como aquela frase impactava as rotinas e os planejamentos de nossa área e a seguir apresentá-lo na frente de todos. Risonhos, meus colegas me olharam, sabendo que a escrita naturalmente era minha e que eu odiava dinâmicas. Então eu fiz um acordo: eu escreveria o texto, mas não o leria.

Assim, as tais amenidades literárias representam um típico produto de nosso tempo, na medida em que são de consumo fácil e rápido, além de serem coladas a um apelo visual que é inerente à nossa contemporaneidade instagramável

A leitura é, por definição, um ato contemplativo que, portanto, requer atenção. Ela exige do leitor uma transversalidade que é opositiva em relação à doentia demanda por ser produtivo que nossa sociedade do desempenho nos exige. Não se lê literatura com a preocupação de produzir produtos dentro de uma lógica imediatista, por mais que métodos de “leitura dinâmica” (seja lá o que isso quer dizer) queiram subordinar o leitor ao consumo fordista de obras de arte. A profundidade de sentidos só é encontrada quando libertada dos grilhões da espetacularização da produtividade. Da Odisseia ao Avesso da Pele, de Sancho Pança a Aureliano Buendia, a literatura se constituiu como uma ferramenta de contemplação, seja no ato da leitura, seja nas assimilações posteriores a ela que nossa subjetividade é capaz de fazer.

Assim, as tais amenidades literárias representam um típico produto de nosso tempo, na medida em que são de consumo fácil e rápido, além de serem coladas a um apelo visual que é inerente à nossa contemporaneidade instagramável. Pode-se consumi-las com muita pressa, pois, afinal de contas, elas só duram um pequeno instante em uma rede social e logo desaparecem em nosso feed. Nessa velocidade, tudo se dilui: das polivalências discursivas à noção de autoria. Nada sobra a não ser um breve instante de imersão em um universo raso. Aliada a essa dinâmica irrefreável, no plano discursivo resta um punhado de autoajuda bem picareta e um misto de crise ontológica com pitadas de linguagem (não muito) poética.

“As práticas pedagógicas, assim como a literatura, não podem ser feitas somente nos ´agoras´, mas sobretudo nas reflexões pautadas em profundidade acadêmica”. Essa foi a primeira frase que escrevi durante aquela dinâmica. A seguir, fiz mais uns dois ou três parágrafos bem ao gosto da coordenação pedagógica, ou seja, cheio de amenidades. Em seguida, quando precisávamos compartilhar a escrita, um colega leu o texto enquanto nossa chefe balançava afirmativamente a cabeça. Precisei aguentar mais de uma hora naquele suplício, até que todos os grupos lessem. Cheguei a pensar que meu texto poderia ser considerado meio debochado, mas logo esse medo se esvaiu, uma vez que o objetivo da dinâmica era, claro, emular um ambiente de reflexão.

Quando o último grupo começou a apresentar, pensei o que eu escreveria caso eu pudesse ser totalmente sincero. “Tenho uma pilha de provas para corrigir enquanto perco tempo com esse tipo de coisas. Nenhum colega meu gosta desses momentos. Mas ninguém tem coragem de dizer isso porque, acima da sinceridade, está o amor pelos boletos pagos”. E por aí a coisa ia. No entanto, o ideal seria, pensei comigo, ser tão sintético quanto as amenidades literárias. “A vida é uma merda”. Ou melhor: “A vida é uma merda – mas a verdadeira literatura nos salva um pouco dela”. No fundo haveria não o rosto de um autor, mas sim a face de todos os amantes de literatura que eu conhecia.

Dirigi para casa com muita vontade de reler Grande Sertão: veredas.

Cristiano Fretta tem 34 anos, é mestre em Letras pela UFRGS, músico, compositor e professor de Literatura e Língua Portuguesa em escolas privadas de Porto Alegre. É autor das obras Chão de Areia, Tortos Caminhos e A luz que entrava pela janela. Também colabora com as revistas digitais Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo, Passa Palavra e com o jornal Extra Classe. 

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2 respostas para ‘Cristiano Fretta: O insuportável mundo das amenidades literárias

  1. Cara, que texto! Lavei a alma lendo-o e, em alguns trechos relendo-o, para ver se era mesmo aquilo que estava escrito. Parabéns ao autor pela coragem. Mas, além disso, pela perspicácia para uma leitura tão agudizada desses tempos fúteis e, ainda assim, espetacularizados que, sobretudo, nós professores vivemos enquanto chafurdamos em um sistema que nos massacra.

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  2. Tuas reflexões me representam. Sou professora aposentada, escritora e mediadora de leitura. Imagina alguem que cursou o Magistério no Ensino Médio, Letras na Graduação e atuou por 31 anos em escolas públicas e privadas. Overdose de dinâmicas, incluindo a do novelo. (🤣🤣🤣) Chegou uma hora que, ao contrário de ti, eu verbalizava em alto e bom som: “ Quero uma dinâmica estática!!. Please!!” A escola, de fato, precisa se reinventar e , seguramente, tal como a literatura , deveria evitar o efeito manada. Isso renderia outro bom artigo: a escrita domesticada pelas pautas. Ah, faltou dizer que teu título-isca funcionou.

    Grande abraço.

    Cláudia Sepé

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