Ana Paula Cecato: Diversidade literária e as listas de livros escolares

“Tratando especificamente da literatura, sua materialidade e seu discurso podem ser trabalhados a partir de questões sociohistóricas e culturais, artísticas e linguísticas”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio

Nesta época, famílias de estudantes de escolas particulares estão atrás das obras didáticas e literárias que serão utilizadas e lidas ao longo do ano letivo. Para se chegar à lista, o processo de seleção e adoção (termo bastante recorrente para se referir a essa prática) dos livros ocorre muito antes, durante o ano letivo antecedente, com o planejamento de ações e projetos pedagógicos que serão feitos a partir das demandas da comunidade escolar e do projeto político-pedagógico das instituições.

Empreende-se, daí, um trabalho coletivo, que envolve escuta, pesquisa e envolvimento das equipes administrativas e pedagógicas em diálogo com estudantes e suas famílias. Paralelamente, o mercado editorial, através da figura do divulgador escolar, está presente nesta conversa, uma vez que os catálogos das editoras oferecem infinitas possibilidades de trabalho a partir da leitura. Tratando especificamente da literatura, sua materialidade e seu discurso podem ser trabalhados a partir de questões sociohistóricas e culturais, artísticas e linguísticas, convocando, dessa forma, um trabalho pedagógico transversal e interdisciplinar.

Estamos esboçando aqui um cenário idealizado da rotina pedagógica escolar, quando sabemos que a realidade é outra: o ano letivo vai acontecendo, as demandas são muitas e os prazos vão ficando exíguos, considerando que uma proposta de educação literária nem sempre é prioridade nas instituições. Outras questões também se imperam: a participação nas escolhas das obras não envolve alguns setores da escola fundamentais para a formação leitora dos estudantes e há interesses e propósitos pouco explicitados para a comunidade escolar que direcionam a seleção dos livros de literatura.

Em algumas instituições, o adjetivo “literário” sequer aparece nas listas¹, sendo substituído por “paradidático”, denominação equivocada e que tem implicações no desenvolvimento do trabalho. Como o próprio nome diz, livros “para-didáticos” são aqueles complementares ao trabalho didático, e podem ou não ser literários. Um livro-brinquedo ou um livro informativo (de não-ficção) pode ser paradidático. Dessa forma, entende-se que o foco do trabalho pedagógico não está na leitura de literatura e na construção de sentidos a partir dela, mas na realização de atividades e trabalho com o “conteúdo”, como se a literatura (e a arte) fosse algo acessório e decorativo para os eventos da escola.

Outra questão importante é a diversidade literária. Muitas escolas privilegiam livros de uma mesma editora na adoção, o que, à primeira vista, não pode parecer prejudicial ao trabalho pedagógico. Para quem consome livros (literários ou não), é sabido que cada editora tem uma política que decide o que é publicado ou não. No campo da literatura, inclusive aquela que é endereçada para crianças e jovens, as políticas editoriais são diversas, tendo a ver com a presença ou ausência de temas sensíveis nas obras, catálogo de autores (pluralidade de vozes autorais, estrangeiras ou brasileiras, investimento em autores iniciantes ou em nomes consagrados no meio), o nível de experimentação em relação ao caráter artístico das obras (nas ilustrações, projeto gráfico e materialidade textual), multiplicidade de personagens e de mundos narrados que contemplem a diversidade cultural, étnica e humana, entre outros aspectos. Ao possibilitar o contato com obras de várias editoras, a comunidade escolar pode também educar para a criticidade e para o consumo consciente, no sentido de que famílias, estudantes e professoras(es) possam fazer suas escolhas de forma autônoma para além da lista de livros escolares, mas também em outros espaços, como numa feira de livros e numa livraria. Por isso, a experiência de uma feira de livros e outros eventos literários na escola (encontros com autores, por exemplo) pode complementar esse trabalho de oferecer a diversidade literária, quando ela não seja possível em outras ocasiões.

Ao fazer a leitura de algumas listas, em uma delas encontrei a informação de que as famílias não precisariam fazer a compra dos livros por alguns motivos: estes seriam disponibilizados em uma plataforma virtual e, em outra escola, um caso mais preocupante, os livros seriam disponibilizados em PDF. No caso da plataforma virtual, a experiência de leitura é outra, e seria o caso talvez de confrontá-la com a experiência de leitura do livro físico, a fim de que a comunidade de leitores possa fazer a sua escolha de forma autônoma. Já no segundo caso, a lista era composta por livros infantis de um mesmo autor cuja obra está em domínio público, mas essa seleção não isenta a responsabilidade ao compartilhar de forma ilegal as obras, uma vez que as edições de obras continuam sendo comercializadas.

As questões aqui levantadas convidam mais a refletir sobre a presença e o papel da literatura nas instituições escolares, especialmente nas de ensino privado, em que existe a prática de adoção de obras. No ensino público, atualmente é o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), que substituiu o PNBE (Programa Nacional da Biblioteca Escolar), que organiza as compras governamentais, e cada escola ou rede de ensino faz as escolhas, o que também tem suas potencialidades e dificuldades. Em cada escola, seja ela privada ou pública, é preciso entender que, para formarmos leitores, existe uma cadeia, com diferentes atores, que atuam dentro e fora das instituições. Se a tarefa da escola é formar uma comunidade de leitores críticos e autônomos, urge pensar numa perspectiva que ofereça “todos os usos da palavra a todos”, como preconiza Gianni Rodari.

¹ Para a escrita deste texto, foram analisadas cinco listas de materiais escolares de instituições privadas de Porto Alegre e interior do estado.

Ana Paula Cecato é graduada e mestra em Letras e professora de Letras – Português/Inglês do IFRS – Campus Rolante. Fez parte da equipe da Área Infantil e Juvenil da Feira do Livro de Porto Alegre, trabalhando na curadoria da programação, nos programas de incentivo à leitura e na formação de mediadores de leitura. Coordena o projeto de extensão Contantes. Foi jurada do Prêmio Jabuti em 2019 na categoria Fomento à Leitura. Foto: Acervo pessoal.

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