“Mesmo que sozinha, não leio um livro desacompanhada”
Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução
Ao me colocar diante das prateleiras de livros que tenho em casa, escuto as vozes das minhas amigas. Estão ali, sussurrando para mim. Entre as tantas trocas sobre leituras e escritas que tenho com uma dessas pessoas tão especiais na minha vida (sou uma mulher de sorte), a jornalista, poeta e CEO da editora Figura de Linguagem, Fernanda Bastos, ela sempre mencionava uma frase que se encontra no romance Seus olhos viam deus, da escritora norte-americana Zora Neale Hurston: “Minha língua fala pela boca da minha amiga”. Sempre achei tão bonita esta imagem.
Os nomes de algumas escritoras e escritores se manifestam primeiro em meus ouvidos, pois é pela voz de amigas/os ou leitoras/es destas autoras/es que os enxergo nas lombadas. Clarice Lispector tem a voz da Natasha; bell hooks e Toni Morrison, da Fernanda; Jacques Lacan e Annie Ernaux, da Patrícia; Anne Carson, da Julia; Elena Ferrante, da outra Patricia e uma Karine também, e assim por diante. Os livros e suas respectivas autorias dizem muito sobre quem são minhas amigas.
*
No diário da escritora e ensaísta norte-americana Susan Sontag (1933-2004) – o segundo volume, que abrange o período entre 1964-1980 – um fragmento escrito por ela chama a atenção. Uma contextualização justa ocuparia muito mais caracteres desta coluna mas, em suma, Sontag escreve no dia 12 de agosto de 1967 que se sente culpada por praticar uma espécie de vampirismo com María Irene Fornés, por quem Sontag foi apaixonada. ”Eu me alimento com a sabedoria das pessoas, a erudição, os talentos, os encantos. Tenho um gênio para localizá-los + para me tornar uma aprendiz + tornar isso meu.”
Em seguida, a escritora se pergunta se tal postura faz dela uma ladra, para logo responder a si mesma que não. A justificativa é a de que Sontag não deixa as pessoas mais pobres, já que o conhecimento adquirido não é algo que se possa levar embora. As pessoas continuam tendo o saber, e ela também. Mesmo assim, nos trechos que seguem, a escritora acredita estar agindo por “falsas desculpas”. Há “volúpia e obsessão” de sua parte em relação ao conhecimento que pode ser adquirido de outra pessoa. Em troca, para sanar a “sensação opressiva de culpa”, a ensaísta diz dar muito mais em troca.

Basta acompanhar os diários de Sontag para perceber que, desde muito jovem, ela alimentava esta obsessão pelo saber. Diz ter aprendido a ler com três anos de idade, conforme lhe contavam na família. Aos seis anos, lia biografias e livros de viagem para em seguida, na adolescência, mergulhar em Edgar Allan Poe, William Shakespeare e Charles Dickens, Victor Hugo, Arthur Schopenhauer e assim por diante. Quem se negaria a enxergar neste comportamento indícios, no mínimo, promissores em relação ao futuro intelectual daquela jovem.
O dilema no qual Sontag se coloca na fase adulta não deixa de ser uma provocação instigante: qual é a porção do conhecimento alheio absorvido por mim que me pertence? É a bagagem cultural da pessoa em questão que me interessa, ou algo mais: a maneira como ela interpreta o mundo é o que me encanta? É tudo a mesma coisa? Essas perguntas são relevantes? Da mesma forma que recebo um pensamento elaborado das pessoas que admiro, ele também se dilui, se funde e se ressignifica junto ao meu repertório, porém, ainda há um pouco da minha amiga em mim.
*
Mesmo que sozinha, não leio um livro desacompanhada. Sublinho trechos e, aqueles que considero bons demais para manter comigo, compartilho com as amizades. A construção de uma frase elaborada, a fala de uma personagem, um trecho que eu não compreendi um final em aberto. Bem se sabe que um livro não se encerra quando a última página é lida. Ele se desdobra nas diferentes perspectivas emprestadas a uma história, na ênfase dada a uma passagem que não dei importância. E então o livro cresce em minhas mãos, pesa. E, mesmo fechado, por dias, meses ou anos depois na prateleira, é a voz familiar de uma delas que me chama apenas não esquecê-la: Clarice, Felinto, Carson, Natasha, Patricia, Susan, Toni, Virginia, Fernanda, bell, Hankine, Zelda, Lygia, Conceição, Annie…


Priscila Ferraz Pasko (1983 – Porto Alegre) é escritora, jornalista freelancer na área cultural e graduanda em História da Arte (Ufrgs) . É autora do livro de contos “Solo rachado por dentro” (Figura de Linguagem, prelo), “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019) – Prêmio Açorianos 2020 na categoria conto. Também integra a coletânea “Novas contistas da literatura brasileira” (Zouk, 2018). Paralelamente, Priscila se dedica à dança contemporânea e a experimentos em videodança. Se interessa ainda por artes visuais, pelo processo criativo/vivência de artistas mulheres e sonhos. Divide o teto com os seus dois gatos, a Pemba e o Arruda.
Apoie Literatura RS
Ao apoiar mensalmente Literatura RS, você tem acesso a recompensas exclusivas e contribui com a cadeia produtiva do livro no Rio Grande do Sul.

Priscila , reacendeu o eco das palavras no meu eu… Gostaria , de com sua voz, despertar mais eus…
Vou comprar seus livros!
Grata, izabel
CurtirCurtir