Guilherme Smee: Bancas de revistas: espécie em extinção

“No centro da cidade é possível encontrar vários estabelecimentos que não repõem mais as publicações (…) muitas bancas de revistas se tornaram pontos de vendas de plantas e outros produtos de floricultura”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução

“O Sol na banca de revistas, me enche de alegria e preguiça”. A música “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, dos anos 1960, traz diversas passagens em que faz referência a elementos da cultura de massa, uma cultura homogênea e direcionada a um público amplo durante as últimas décadas do século XX, impulsionada pela televisão. As revistas, vendidas em banca, também faziam parte dessa massificação da cultura, os quadrinhos incluídos aí. Com a popularização da internet a partir do início do século XXI, a cultura de publicações impressas deixou de ser algo massificado para se converter em um mercado de nicho. 

O que já era segmentado, ficou ainda mais. As bancas deixaram de vender revistas periódicas de informação e o mercado editorial apostou nas publicações perenes, dossiês que tratam de determinados temas. A gigante das comunicações impressas, a Editora Abril, praticamente desapareceu desses locais de venda, cancelando a grande maioria de seus títulos periódicos. A Editora Abril também havia deixado de publicar seu carro chefe por muitos anos nas bancas, a linha de quadrinhos e outras publicações Disney, que foi assumida pela editora gaúcha Culturama em 2018. Victor Civita, o dono da Editora Abril, costumava dizer quando uma nova publicação experimental era colocada nas bancas que “o Pato paga”, referindo-se ao seu maior sucesso de vendas, a revista O Pato Donald, nas bancas pela Abril desde 1951.

Os anos 1980 foram o auge das bancas e dos quadrinhos nas bancas. “Nas décadas de 1970 e 1980, principalmente, era nas bancas que pessoas das mais variadas classes sociais tinham acesso à informação de um modo mais fácil e barato do que nas livrarias. Dos gibis e figurinhas às revistas sobre carros e costura, havia opções para a família inteira. Muitas vezes, o jornaleiro era visto como uma extensão do círculo familiar, um personagem do cotidiano” (CARVALHO, 2018, p. 2).

Estima-se que a cidade de São Paulo tenha pouco menos de 2 mil bancas. Segundo a Meio & Mensagem é preciso dedicar no mínimo 75% do espaço das bancas de revistas a produtos editoriais, segundo lei do Município de São Paulo. Não há números para a cidade de Porto Alegre ou do Rio Grande do Sul. Mas é fato que grande parte das bancas da capital do estado gaúcho tem se deteriorado e virado pontos de vendas de outros tipos de produtos. No centro da cidade é possível encontrar vários estabelecimentos que não repõem mais as publicações e, no centro e suas imediações muitas bancas de revistas se tornaram pontos de vendas de plantas e outros produtos de floricultura. Muito pior que isso, muitas bancas se tornaram espécie de camelôs, vendendo desde alimentos e bebidas a quinquilharias falsificadas como traquitanas para celular, isqueiros, cigarros, brinquedos e outros objetos que nada tem a ver com impressos.

É uma forma de sobrevivência da carcaça das bancas, que não traz mais revistas ou jornais como atração principal. O livro De Banca em Banca, organizado e desenvolvido por pesquisadores da UFMG, avalia a situação atual desses pontos de venda como uma “catástrofe cotidiana”, uma desgraça que acontece a olhos vistos e durante nossas ações do dia-a-dia, para a qual o comportamento generalizado de consumo trivial e de cultura contribui para essa deterioração.

Formas de sobrevivência das bancas através de produtos impresso têm se apoiado nos quadrinhos e nas figurinhas autocolantes, dos quais a Panini Comics Brasil possui o monopólio. As figurinhas da Copa do Mundo foram um fenômeno de vendas durante as duas últimas competições mundiais. Os quadrinhos proporcionam às bancas uma forma de oferecer produtos que não dependem de sazonalidade. Tanto as figurinhas como os quadrinhos são formas de fidelizar o público a esses estabelecimentos. Muitas bancas criaram grupos de whatsapp com os lançamentos de quadrinhos anunciados semanalmente para seus leitores.

O livro De Banca em Banca traz o depoimento de um jornaleiro de Belo Horizonte que está há 29 anos no ramo de venda de revistas sobre sua clientela de quadrinhos: “Agora, no meu caso aqui, por exemplo, eu me dediquei há uns três anos aos quadrinhos. E isso me trouxe um outro tipo de cliente. Porque antes, eu me lembro, até uns três anos e pouco atrás, eu me lembro que minha clientela era mais mulheres e pessoas adultas. Hoje tem o jovem, quer dizer o jovem de 15 até quarenta anos, entendeu? Isto até me surpreendeu, porque quando eu comecei, eu achava que era só o jovem de quinze ou dezesseis anos. E agora eu sei que não, sei que as pessoas de 30, 35 anos leem mangá, entendeu. Isto realmente me surpreendeu”. Portanto, o preconceito e o senso comum sobre os quadrinhos continua afetando mesmo aqueles que trabalham com eles no dia a dia.

Um sintoma da catástrofe cotidiana das bancas de revista foi a criação de um ponto de vendas da gigante empresa multinacional monopolizadora das publicações de quadrinhos e de figurinhas brasileiras, a Panini. Em novembro de 2023 foi inaugurada a loja Panini Point em Porto Alegre, no Viva Open Mall. A localização da loja em um dos conjuntos comerciais mais nobres da cidade, em região de alto poder aquisitivo, dá uma ideia do tipo de público que a editora resolveu mirar. Tentei entrevistar o gerente do Panini Point, mas até a publicação desta coluna a Panini não havia autorizado o mesmo a responder as perguntas que enviei para corroborar estas hipóteses.

A Panini já havia testado alguns pontos de vendas em aeroportos no Brasil, com destaque aos de São Paulo. Atualmente existem lojas Panini Point em outras cidades do país além de Porto Alegre: Santo André, Campinas, Belo Horizonte, Brasília, Niterói, e é claro, em São Paulo, até onde pude apurar.. A marca planeja abrir até 100 lojas no Brasil até o final de 2024. Segundo entrevista para o Jornal do Comércio, a escolha de Porto Alegre como primeiro local do Brasil para a abertura de uma Panini Point é a carência de pontos de vendas deste nicho na cidade, apesar da avidez do público gaúcho por esse tipo de produto. Na Panini Point de Porto Alegre já aconteceram alguns eventos para agitar a comunidade consumidora dos seus produtos, como uma feira de quadrinhos com os artistas do Dínamo Estúdio, encontro de cosplayers e clubes de trocas de figurinhas.

Ao mesmo tempo, outro motivo pode ter levado a Panini a estabelecer raízes em Porto Alegre. No ano de 2023, a maior rede de bancas de shopping da cidade, a Cameron Revistas, deixou de comercializar os produtos da Panini, ficando mais de seis meses daquele ano sem renovar seu estoque de publicações da editora. Segundo pude verificar, o dono da rede Cameron queria mais vantagens no repasse de lucros ao seu negócio e a editora italiana negou. A Cameron passou a apostar em produtos da editora Alta Geek, mas sem muito sucesso, já que esse tipo de material continua encalhado em suas lojas. Por volta de setembro de 2023, as lojas da Cameron voltaram a comercializar os produtos da Panini e em novembro deste mesmo ano, surgiu o Panini Point no Viva Open Mall. Dá pra fazer as contas. Tentei verificar essa hipótese nas perguntas enviadas ao gestor da loja da Panini Point, mas até o fechamento deste texto não obtive resposta. Recentemente, no final de fevereiro, em visita à unidade da Cameron do Shopping Wallig, os produtos da Panini Comics não estavam presentes na loja. Ao ser indagado, o responsável respondeu que deixaram de trabalhar com a empresa.

A escolha do Viva Open Mall pode ter sido relacionada com o fato de que o centro de compras é um espaço aberto, que se relaciona às características das bancas de revistas tradicionais. “A singularidade da banca está  no fato dela se localizar na rua. Ao instituir-se como uma ambiência comunicacional na paisagem urbana, ela faz acontecer de forma peculiar uma articulação entre o tempo da atualidade e o espaço urbano. Ela faz com que os homens compartilhem o espaço e, simultaneamente, um tempo dos acontecimentos atuais”, apontam os pesquisadores da UFMG. Com exceção do Panini Point de Niteroi, e a loja da Panini de São Paulo, que fica próxima à estação Paraíso do metrô, contudo, todas as outras lojas da franquia se localizam em shopping centers tradicionais.

Em Porto Alegre, a primeira lei própria voltada para regulamentar as bancas de revistas, nº 3.397, foi aprovada em 8 de julho de 1970, pelo então prefeito Telmo Thompson Flores. Antes disso, a categoria já estava organizada em uma associação em 1965, que foi transformada em sindicato em 1969 e reconhecida pelo Ministério do Trabalho em 1971. A origem da palavra “banca” como sinônimo para local público de venda de revistas vem do primeiro jornaleiro que estabeleceu um ponto de venda fixo no Brasil, o italiano Carmine Labanca, na cidade do Rio de Janeiro. Em Porto Alegre, nos anos 1950, a Rua dos Andradas, a famosa Rua da Praia, contava com diversas bancas de revistas em formato redondo que duraram cerca de duas décadas. Uma destas bancas ainda resiste na Praça da Alfândega.

No Brasil, como explica o pesquisador de comunicação da UFF, Viktor Chagas, o que atualmente entendemos como banca de jornais surge no final do século XIX. Antes disso, periódicos eram comercializados diretamente a partir das redações ou de livrarias de luxo, por livreiros e editores que mantinham suas próprias lojas e por ambulantes. Nesse sentido, a ideia de um ponto fixo de venda nas ruas das cidades se inicia com os vendedores utilizando caixotes para apoiar as pilhas de jornais. Os caixotes deram lugar a quiosques de madeira que, na década de 1950, foram substituídos pela estrutura metálica que se tornou um padrão nas cidades brasileiras.

Em 2024, outra ameaça ao fim das bancas de revistas vem de uma iniciativa da própria prefeitura da cidade de São Paulo. Existem quase 250 pontos e estruturas onde existiam bancas de revistas que foram desativadas na cidade. A prefeitura pretende implantar outro tipo de pontos comerciais para substituí-las “com pontos comerciais construídos com design modular inovador, materiais resistentes e duráveis e com a infraestrutura necessária para possibilitar variados tipos de comércio”, segundo informe da Secretaria Especial de Comunicação de São Paulo. 

Em 2021, a prefeitura já havia anunciado um plano de modernização de bancas de revistas em parceria com o banco Santander que, aparentemente, não foi adiante. No novo projeto, contudo, a lei dos 75% de produtos editoriais nesses espaços não prevalece, tudo poderia ser comercializado nos novos locais. Um edital da SP Parcerias vai conceder a uma empresa privada a possibilidade de gerir esses pontos, ou seja, uma estratégia de privatização e de tirar a responsabilidade da prefeitura sobre as bancas de revistas inoperantes. Contudo, donos de bancas de revistas de São Paulo não ficaram satisfeitos com essa mudança, uma vez que gostariam que a prefeitura desse subsídios para a melhoria dos pontos que vendem publicações que ainda resistem.

Segundo entrevista concedida ao site Publish News, o presidente do Sindicato dos Vendedores de Jornais e Revistas de São Paulo, José Antônio Mantovani, a causa de uma banca falir é a localização do ponto de venda. Portanto, estabelecer um ponto comercial quaisquer nestes espaços poderia ser um mau negócio. O presidente do Sindijorsp aponta também um fenômeno de canibalização: “É um risco que as bancas estão correndo, ficamos em desvantagem”. Completa comentando que “uma sociedade precisa vender materiais de leitura, e me parece que com o projeto a empresa vencedora vai avançar em postos que ainda não estão fechados, porque existem essas desvantagens. Não teremos mais jornais e revistas vendendo na cidade, apenas quinquilharias”. O projeto seguia em formato de consulta pública até o fechamento deste texto.

Podemos perceber que as bancas de revistas estão em extinção, os fatores que causam isso são desde um mercado de nicho provocado por desinteresse geral em produtos impressos, iniciativas privadas e públicas que minam a credibilidade desses pontos de venda, monopólios editoriais, e a crise editorial e na cultura que o Brasil e o mundo atravessam. A pandemia do covid-19 também ajudou a afundar ainda mais o mercado editorial brasileiro e o comércio em bancas de revistas. Em entrevista para o Já OnLine, jornaleiros de Porto Alegre declararam que em 2021 as empresas de jornal e de revistas não estavam dando conta da demanda dos leitores. Enquanto isso, o jornal que mais vende nas bancas do centro de Porto Alegre não tem notícias e nem leitores. Tratam-se dos jornais para pet, vendidos em fardo de 1kg. Segundo a reportagem, nenhuma banca do centro de Porto Alegre vende menos de 15 fardos por semana. Enquanto isso, o fardo de lutar pela permanência do comércio de jornais e revistas em bancas continua pesado.

Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges

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