mariam pessah: Sobre ‘O manto da noite’, de Carola Saavedra

“Carola não é só uma escritora, é também uma artista, uma visionária, uma sonhadora”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre fotos de acervo pessoal

Terminei de ler, pela segunda vez, O manto da noite. Este livro não tem início nem fim. (Será que terminei, então?) Não tem tempo nem espaço. É o livro do manto, é o livro da noite. O que há embaixo desse manto? O que há por dentro dessa noite?

Tudo é possível e passível de acontecer, pois nela não existem paredes onde pregar relógios.

Se quando li Com armas sonolentas eu disse que essa era literatura em 3D, minhas amigas e meus amigos, vou lhes dizer que a nossa Carola Saavedra conseguiu se superar, pois sem dúvidas ela chegou à quarta dimensão. Seja ela a do tempo, a da palavra — como diria Clarice Lispector em Água viva —, ou seja o que vocês queiram imaginar, pois imaginação é o que não falta neste livro nem em toda sua obra. Carola não é só uma escritora é também uma artista, uma visionária, uma sonhadora.

Todo está (inter)conectado. A tal ponto que uma vez eu enviei a ela uma imagem da Cordilheira. Era uma foto que eu tirei desde o avião indo para o Chile. Ela está tão perto, ela é uma Bruxa, ela é um ser ancestral. Estávamos falando de Margarita Pisano, feminista chilena. Aí Carola me responde, Olha só, estou escrevendo um livro sobre a Cordilheira. Ah!, é?

O livro todo versa sobre o poder do inconsciente. Quantos mundos? Realismo onírico o chamou a autora no seu artigo publicado no blog da Companhia das letras.  Quantos mundos cabem nos sonhos, quantos níveis transitamos indo e vindo, mesmo sem saber a onde. Chegado o momento a gente saberá. Confiemos. Poderíamos dizer que este livro fala em vidas, muitas e plurais, inclusive, e, sobretudo, desde um ponto de vista dos povos originários. O manto descobre vidas humanas e não humanas. Podemos pensar também em vidas-almas, encarnações, este termo que, na língua hebraica, vem do verbo circular, estar circulando, em circulação, que é de certa forma, o que se passa neste livro:  “Nascemos do esquecimento. Existir é lembrar o que não vivemos”. E aqui a autora conversa também com a poeta Cecilia Meireles:

“Há mil rostos na terra: e agora não consigo
recordar um sequer. Onde estás? inventei-te ?
só vejo o que não vejo e que não sei se existe.”
(…)
“Qualquer palavra que te diga é sem sentido.
Eu estou sonhando, eu nada escuto, eu nada alcanço.
Quem me vê, não me vê que estou fora do mundo. ”

Ela escreve, através de diferentes narrativas – cartas, diários, teatro. Ela tenta dizer algo que nos escapa. Ela caminha ao longo de 153 páginas. Nesse percurso acompanhamos uma personagem que começa criança, questionando-se se a mulher que diz ser sua mãe, é realmente sua mãe, e se o homem que diz ser seu pai, é realmente seu pai. A partir desse questionamento tão básico a gente terá as portas abertas para questionar todo. Então poderíamos caminhar numa terra de incertezas. Sem um chão para nos segurar. E o que se passa uma vez que o chão não é sólido e é possível cair e se transformar e se transportar e transmutar?

Conversar com a Cordilheira, uma espécie de deidade, mãe de todxs nós. É ela, a Cordilheira, quem vai afirmar : Nós somos um continente de mortos. Disso ainda se fala pouco, né? Quantas pessoas foram assassinadas a partir de que os invasores chegaram nas suas caravelas?

Uma escritora redige um livro que não é compreendido pela sua editora, esta decide não o publicar, recomendando continuar com o que a autora já sabe fazer. Para que inovar? Em outro espaço-tempo, aquela história está sendo vivida e a escritora está dentro da história como mais uma personagem. “Agora você, me fale desse mundo que inventaste com tuas mãos bordadas nas minhas …”

Tudo é em cima como é embaixo.

Temos mais uma vez o lado de dentro e o lado de fora sem ser nomeados como acontecia em Com armas sonolentas, onde a autora dividia o livro em duas partes; agora, o lado de dentro e o lado de fora são movimentos contínuos. Caminhando. Assim chamou primeiro a artista Lygia Clark o seu trabalho com as fitas de Moebius. Mais tarde o denominaria O antes é o depois.  Isso foi em 1963. Importa a data?, importa saber que faltavam 10 anos para Carola nascer, ou será que ela já estava aí? Caminhando é um estudo voltado para a exploração da fita de Moebius, que, em palavras de Suely Rolnik: “[é] uma superfície topológica na qual o extremo de um dos lados continua no avesso do outro, o que os torna indiscerníveis, uniface”. É esse movimento que percorre o livro todo. Esse e outros mais também, inclusive, os que não vemos, mas percebemos as outras dimensões.

Gostaria de ver/sonhar uma conversa entre Carola e Lygia. Sorrio imaginando.

Virando a página, ela vai a Madri onde encontra a Layla, cujo significado — na língua hebraica — é noite. Layla-Noite é a única personagem que tem nome, o resto não tem, exceto xs personagens da peça de teatro, claro.

Foto: Juan Guzmán

O tema das personagens e os nomes é uma característica que já aparece em vários livros anteriores da autora. Em Flores azuis, as cartas são assinadas por A. Também em Com armas sonolentas, as personagens transitam entre vidas e nomes : a atriz já aparece com seu nome profissional e Maike aparece com o nome que lhe deu a mulher que diz ser sua mãe e o homem que diz ser seu pai. Ou seja, as personagens são, mas não são, ou nem som.

O som dos nomes das mulheres ainda foi muito pouco escutado.

Por isso Layla chega noite, chega guerreira, chega forte, chega lésbica.

Ela se levanta, põe o manto sobre os ombros e me olha enquanto escrevo. “Quando ela me beija sinto um vento forte e um cheiro de mar.”

PS : Se você ainda não leu o livro e achou algumas partes confusas ou ambíguas, lendo o livro tal vez entenda mais. Tal vez não. Disso se trata. Nem sempre entendemos. Nem tudo é racional. Mas se ainda assim …, recomendo muito a leitura de O mundo desdobrável, ensaios para depois do fim que Carola escreveu antes d’O manto. Este viria a ser a ficção dos ensaios.

mariam: “terminei de ler e tô aqui…”

mariam pessah : ARTivista feminiSta ,escritora e poeta, autora de ‘Em breve tudo se desacomodará’, romance, 2022, e ‘Grito de mar’, poemas, 2019, entre outros títulos. Organiza o Sarau das minas/Porto Alegre e ministra a Oficina de escrita e escuta feminiSta.

O manto da noite
Carola Saavedra
106 p.
R$ 64,90
Companhia das Letras
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