Guilherme Smee: E o preconceito continua sendo o pior inimigo

“Julia Lewald, roteirista da série original dos X-Men em 1992, respondeu às críticas da alt-right e simpatizantes à nova versão do desenho animado, que estreou em março: ‘Não ensinamos nada?'”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução

Estreou recentemente a animação X-Men’97, que traz um revival da produção da equipe mutante de super-heróis da Marvel Comics desenvolvida nos anos 1990. Entre muitas cenas que fazem brilhar os olhos dos fãs novos e de longa data, que eram crianças quando o desenho animado estreou, a mensagem continua a mesma: “ama o teu próximo como a ti mesmo”.

O ano era 1992 e o mundo começava a se acostumar com uma Nova Ordem Mundial, deixando a polarização entre os blocos capitalista e socialista do mundo. Na Europa, fronteiras eram redesenhadas e conflitos militares assolavam diversos países da região, principalmente nos Bálcãs.

O mundo era bombardeado pela mídia com alarde sobre a epidemia da AIDS, que foi considerada por muitos e pela grande imprensa como o “câncer gay” por ter afetado em primeiro lugar homossexuais masculinos, depois se espalhando para todos estratos e tipos sociais por ser uma doença sexualmente transmissível. Isso não impediu que o ódio e o preconceito contra pessoas queer aumentassem de uma forma extensiva e intensiva. 

No Brasil, a mesma mídia que espalhava o pânico moral contra os gays também insuflava os jovens brasileiros a irem às ruas, pintarem suas cara e protestarem contra o corrupto “Caçador de Marajás”, o então presidente Fernando Collor de Mello, que naquele ano sofre o primeiro impeachment da história brasileira. O país assistiu resignado ao massacre de 111 presos da Casa de Detenção São Paulo, no Carandiru, através de uma intervenção da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Por outro lado, ficou estarrecido com o assassinato de Daniella Perez, filha da escritora de novelas Glória Perez, morta a golpes de tesoura por seu companheiro de teledramaturgia, Guilherme de Pádua, ex-go go boy e hoje já falecido. Ambos contracenaram na novela De Corpo e Alma, escrita pela mãe de Daniella. Pela primeira vez aconteceu um movimento internacional em prol da ecologia, a ECO 92, que aconteceu no Rio de Janeiro, devido à destruição provocada pelos seres humanos no planeta, que chamou a atenção de autoridades internacionais. 

Em 1992 o ódio e o preconceito pareciam estar na moda. O mundo e, principalmente o Brasil, era dominado por uma comunicação verticalizada, de cima para baixo, massificada, representada pela televisão. Isso facilitava que o preconceito se espalhasse e que a diversidade não fosse retratada em produções audiovisuais, que representavam de forma diversa apenas pessoas brancas e heterossexuais, enquanto que outras identidades eram extremamente estereotipadas, servindo de alívio cômico como no humorístico Os Trapalhões. A Rede Globo estava presente em 96% do território nacional, inclusive na selva Amazônica. Esse tipo de comunicação, direcionada, pasteurizada e distribuída para todos de maneira uniforme, além de manter o poder nas mãos de quem sempre teve poder, era uma ferramenta útil de controle e ordenação da população, disseminando os pensamentos e mentalidades que deveriam ser seguidas pela maioria. Por essa razão foi fácil que primeiro o povo escolhesse Collor para presidente e, depois, o depusesse. Também era mais eficiente espalhar o “pânico moral” para diferentes lugares do país e para as pessoas mais diversas. Foi na Rede Globo, em 1994, dois anos depois da estreia nos Estados Unidos, que foi transmitida a primeira animação seriada dos X-Men, no programa infantil matutino TV Colosso.

Os X-Men vinham de um enorme sucesso nos quadrinhos em 1991 quando sua nova revista, intitulada simplesmente X-Men, bateu todos os recordes de vendas de quadrinhos até hoje, vendendo mais de 8 milhões de cópias em seu número inicial. O desenhista Jim Lee estava em voga e foi o visual que ele criou para os personagens que foi utilizado na animação criada em 1992 para o canal Fox Kids (que também tinha uma versão brasileira na TV à cabo), produzido inicialmente pela AKOM e pela Saban Entertainment. A série durou 76 episódios e cinco temporadas, durando de 1992 a 1997.

A tônica dos desenhos animados dos X-Men dos anos 1990 era a luta dos mutantes contra o preconceito. Por isso mesmo, para o primeiro episódio foram escolhidos como inimigos os Sentinelas, robôs criados por humanos e sancionados pelo governo para perseguir e matar mutantes. Magneto, o primeiro vilão dos quadrinhos dos X-Men, só aparece no terceiro episódio da série. Antes disso, os Sentinelas matam Morfo, um dos integrantes dos X-Men. Também na série vemos acontecer a ascensão de uma milícia antimutante, os Amigos da Humanidade, algo parecido com os “cidadãos de bem” de hoje em dia, que querem exterminar quem é e pensa diferente. Os Amigos da Humanidade são liderados por Graydon Credd, filho de um notório terrorista mutante, o Dentes de Sabre, inimigo figadal de Wolverine. 

A mutante asiática Jubileu serve como uma representante do telespectador, já que ambos estão conhecendo o universo dos X-Men pela primeira vez. Jubilation Lee é tornada mascote dos X-Men desde o primeiro episódio, depois de fugir de casa e ser perseguida por Sentinelas em um shopping center, um dos grandes símbolos neoliberais dos anos 1990. A série adaptou muitas sagas importantes dos X-Men com determinada fidelidade, como a emblemática Saga da Fênix Negra e também tomou muitas liberdades criativas para poder adaptar as tramas dos quadrinhos aos personagens da equipe principal. Em um movimento contrário, as histórias da animação foram publicadas na revista X-Men Adventures, que também teve sua versão brasileira.

Também em 1992, a primeira edição da primeira série de Anuais da mesma linha de revistas que vendeu 8 milhões de cópias, Wolverine apresentava a Jubileu os dez maiores inimigos dos X-Men. O maior inimigo da equipe de mutantes não era Magneto, Apocalipse ou os Sentinelas, mas sim o preconceito que sofriam da população em geral do mundo. Os X-Men, desde os anos 1960, quando foram criados, foram um analogia das minorias sociais, como os negros, as mulheres, os latinos, as pessoas queer, então era de se esperar que, entre outros tipos de fãs, eles amealharem para sua base pessoas que se sentissem desajustadas da sociedade. Diversos discursos do seu líder, Professor Xavier, e de outra mascote dos X-Men, Kitty Pryde, são notórios por fazerem uma metáfora à defesa das minorias do mundo real.

Reprodução

Na iminência do lançamento do revival do desenho animado de 1992, a produção de 2024 X-Men’97, sofreu ataques nas plataformas digitais de pessoas conservadoras que se revoltaram contra dubladores dos personagens, contra a retratação menos sexy de Vampira e com a declaração de que o personagem Morfo seria não-binário. Culparam a cultura woke, ou seja a lacração, em bom brasileiro. Disseram que o desenho era coisa de Social Justice Warriors, ou os Guerreiros da Justiça Social, que na acepção da alt-right são pessoas que lutam pela igualdade de representação nas mídias através de comentários nas plataformas digitais. Ou seja, um desenho que é a representação da luta contra o preconceito continua sofrendo o mesmo preconceito que seus personagens sofrem.

Nesta quarta-feira, 20 de março de 2024, às 4 da madrugada, estreou X-Men’97 no canal de streaming Disney+. O desenho é um revival da animação original e é uma espécie de “O que aconteceria se…” a produção de X-Men tivesse continuado de onde parou, nos ano de 1997. Por isso, a obra tem um visual todo retrô, mas com uma tecnologia de animação condizente aos dias atuais. Os fãs da série clássica irão se deleitar com as homenagens e easter eggs feitos com a produção antiga e com elementos das histórias em quadrinhos. A abertura da animação, que sempre foi marcante e ainda contém uma música que dizem ter sido plagiada da canção “Papagaio Alegre”, de Hermeto Pascoal, também é uma joia para os aficionados. Ela não apenas mantém elementos antigos, como traz elementos — e personagens — novos. Um exemplo é a substituição de Pássaro Trovejante e o personagem verde não identificado — que gerou lendas urbanas — por duas mulheres: Emma Frost e Lady Letal na cena em que os X-Men se chocam com seus inimigos.

Outra boa atração para os fãs brasileiros é a presença de Roberto da Costa, o Mancha Solar, mutante carioca da gema, o primeiro personagem brasileiro da Marvel Comics. Criado em 1982 em Marvel Graphic Novel #4, por Chris Claremont e Bob McLeod ao lado de sua equipe de Novos Mutantes, ele possui poderes relacionados com a energia solar. Em sua primeira aparição, Roberto está em um jogo de futebol, em que é atacado por um rival racista. Lá, no meio de uma briga, seus poderes disparam pela primeira vez. A confusão acarreta na morte de sua namorada, Juliana. Roberto, o Beto, como é chamado nos quadrinhos brasileiros (nos EUA chamam ele de Bobby), é bastante arrogante e endinheirado, herdeiro de um rico industrial brasileiro. Contudo, Claremont não conhecia muito bem o Brasil quando criou o personagem, e colocava em sua boca expressões como “Madre de dios!”. No desenho, logo quando o personagem aparece em sua primeira cena, na dublagem em inglês, ele também parece expressar um “Por Dios!”. Na Marvel, Mancha Solar cresceu, evoluiu e chegou a integrar e liderar equipes dos Vingadores. 

Em X-Men’97 a função de Mancha Solar é muito parecida com a de Jubileu na produção original: apresentar o universo dos X-Men ao espectador. Ele também é perseguido pelos Amigos da Humanidade, dessa vez melhorados com armamentos de Sentinelas. Então os X-Men precisam libertar Roberto e encontrar a origem da tecnologia Sentinela. Mas Roberto esconde de seus pais que é mutante (a cena que mostra seus poderes é muito bonita em termos de animação), isso é uma analogia ao outing das pessoas queer, o ato de sair do armário e se revelar à família, como já explorado com o Homem de Gelo em X2: X-Men Unidos, de 2003. Mais uma vez o preconceito é a tônica do desenho animado e isso ganha uma dimensão ainda maior no segundo episódio disponibilizado no dia de estreia, O Julgamento de Magneto. Esse episódio lembra muito a ocasião da Invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2022 em Washington D. C, e a destruição da Praça dos Três Poderes em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023. Inclui-se aí uma figura que destila ódio, armada para matar, fantasiada de uma maneira esdrúxula, o Executor X.

Assim, se o preconceito era a tônica nos anos 1990, ele não deixou de ser nos dias de hoje. Temos duas grandes guerras sendo noticiadas diariamente nas mídias. A Guerra da Ucrânia já matou mais de 200 mil pessoas por meio de uma iniciativa do governo de Vladimir Putin, um tirano ditador que se mantém no poder por cinco mandatos consecutivos e que possui um política de baixa tolerância a estrangeiros e homossexuais. Já a mais recente Guerra em Gaza, considerada genocídio por alguns, ou seja, uma guerra que se baseia no extermínio de um povo diferente e, por isso, envolve intolerância e preconceito, em menos de um ano já matou 30 mil pessoas.

Some-se a isso a ascensão de assassinatos de ódio, feminicídios e o fato de a população jovem, masculina e negra ser a que mais morre em confrontos armados, no Brasil e no mundo. O Brasil ainda é o país que mais mata homossexuais e pessoas trans do mundo. Muitas vezes a religião, fator que deveria ser usado para re-ligar o humano com a essência do que é humano, com justificativa para atos inumanos. Tudo isso acentuado pelo discurso de ódio da extrema direita que está numa escalada só comparada aos anos anteriores da Segunda Guerra Mundial, quando o nazismo e fascismo, movimentos de extrema direita, nasceram.

Julia Lewald, roteirista da série original dos X-Men em 1992, respondeu às críticas da alt-right e simpatizantes à nova versão do desenho animado, que estreou em março: “Não ensinamos nada? Você não estava assistindo? Será que não descobrimos como ser legais uns com os outros e como nos dar bem? É muito estranho sentir que ainda estamos lidando com as mesmas questões com as quais estávamos lidando há 30 anos. É doloroso”.

Uma frase muito utilizada nas histórias dos X-Men diz que “quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem iguais”. Seja durante a exibição da série animada de 1992, seja na estreia do revival dessa animação há poucos dias, o preconceito continua sendo o maior inimigo não apenas dos X-Men, mas da humanidade como um todo. O mais triste e irônico é que a humanidade usa o preconceito como um motivo para exterminar e para corromper e deteriorar a ela mesma.

Guilherme “Smee” Sfredo Miorando é roteirista, quadrinista, publicitário e designer gráfico. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, Especialista em Imagem Publicitária e Especializando em Histórias em Quadrinhos. É autor dos livros ‘Loja de Conveniências’ e ‘Vemos as Coisas Como Somos’. Também é autor dos quadrinhos ‘Desastres Ambulantes’, ‘Sigrid’, ‘Bem na Fita’ e ‘Só os Inteligentes Podem Ver’.
Foto: Iris Borges

Apoie Literatura RS

Ao apoiar mensalmente Literatura RS, você tem acesso a recompensas exclusivas e contribui com a cadeia produtiva do livro no Rio Grande do Sul.

Literatura RS

Deixe um comentário